Nada Ortodoxa: uma análise sobre os casamentos de judeus hassídicos
- 13 de março de 2024
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- Theillyson Lima
- Posted in Sessão Cultural
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A série da Netflix aborda uma realidade pouco conhecida da comunidade hassídica.
Gabrielle Venceslau
Você com certeza já se deparou com histórias que abordam a presença dos judeus durante o Nazismo na Segunda Guerra Mundial. Apesar do passado trágico, essa comunidade é muito expressiva no mundo, com cerca de 13 milhões de adeptos. Nos Estados Unidos, por exemplo, a população judaica atinge 5,7 milhões, superando a israelense, com 4,8 milhões.
O judaísmo se divide em várias vertentes, sendo a ortodoxia uma delas. Reconhecida pela adesão estrita aos 613 preceitos estabelecidos pela Lei Judaica, nomeada Halachá, é identificada por formar uma comunidade notoriamente fechada e fundamentalista. Dentro do judaísmo ortodoxo, ainda existem várias correntes de pensamento. Entre elas, está a do hassidismo.
Essa realidade é apresentada na trama da Netflix, “Nada Ortodoxa”, lançada em 2020. Inspirada em uma história real, a série se desenrola em Williamsburg, bairro com maior expressividade de judeus ortodoxos hassídicos dos EUA, narrando a fuga de uma jovem judia de seu casamento arranjado.
Deixar o passado para trás não é uma tarefa tão fácil como ela gostaria, uma vez que, na tradição judaica, o casamento representa um dos momentos mais importantes na vida das pessoas. Para eles, casar desempenha três importantes propósitos: a continuidade da espécie humana, o companheirismo entre o casal e o estabelecimento da família.
Quanto antes melhor
Como resultado dessa perspectiva, é comum que os jovens se casem no final da adolescência ou nos primeiros anos da vida adulta. Esse é o caso da personagem principal da trama, Esty, que tem o casamento arranjado aos 17 anos, pois, segundo a tradição, a verdadeira jornada da vida adulta tem início a partir desse compromisso.
A narrativa mostra que nessas comunidades, os matrimônios são frequentemente organizados pelos pais ou “casamenteiros”, a fim de evitar uniões inter-religiosas. Para os ortodoxos, os matrimônios mistos representam uma ameaça à preservação da identidade judaica, já que os filhos dessas uniões podem não ser educados conforme as tradições.
Entretanto, essa imposição do casamento, na maioria das vezes, não leva em consideração o consentimento dos envolvidos. A decisão é tomada pelos pais do homem em consenso com a família da mulher. Na série, isso acontece com a mãe de Esty, que casa com um estrangeiro e tem um relacionamento traumático que a faz se desvincular da comunidade.
Casar para procriar
Após a grandiosa cerimônia de casamento, repleta de tradições e significados, a procriação é o passo mais crucial. Na perspectiva da comunidade ortodoxa, apresentada pela série, casar-se e não ter filhos é considerado uma vergonha para o casal e suas famílias, pois são considerados como presentes de Deus. Assim, a ausência deles representa um obstáculo para o sucesso do casamento.
A trama aborda com sensibilidade o desafio enfrentado por Esty e seu marido para conceber filhos, que se torna o principal motivo para o fim do relacionamento do casal. Isso acontece porque a personagem descobre que sofre de vaginismo, uma condição que torna as relações sexuais dolorosas.
Apesar dessa dificuldade, o casal enfrenta muita pressão dos familiares, especialmente da sogra de Esty, que insiste na necessidade do casal ter um filho para que o casamento seja considerado bem-sucedido. Isso pesa para que Esty permita a primeira relação do casal mesmo em meio ao desconforto. Essa situação mostra a complexidade das expectativas sociais e das pressões familiares sobre a questão da procriação na comunidade ortodoxa.
Diversas regras e falta de informação
Da mesma forma que em outros aspectos da vida de um judeu ortodoxo, o casamento é regido por uma série de regras, desde como realizar a intimidade do casal até os períodos em que deve se abster. É por isso, que antes de se casar, as mulheres têm aulas destinadas a mostrar como o sexo funciona, mas estas se limitam a instruções muito básicas.
A série mostra a falta de conhecimento da Esty sobre o funcionamento do seu próprio corpo e da sexualidade, chegando ao ponto dela se surpreender ao descobrir a estrutura fisiológica de seu órgão genital. Essa falta de conhecimento tem muito a ver com a pouca escolaridade que as mulheres recebem e a proibição do acesso à internet para busca de informações por parte da comunidade ortodoxa hassídica.
Quebra da realidade
Todo esse contexto resulta em uma série de questões problemáticas, como casamento envolvendo menores, casos de abuso sexual, pressão para conceber filhos, relacionamentos infelizes, dentre outros. Essas circunstâncias levam algumas pessoas a tomar a decisão de fugir de suas comunidades, como acontece com Esty, que abandona as tradições e é considerada “morta” pelos seus próprios familiares.
É difícil quebrar com uma realidade que é imposta às pessoas que vivem nestas comunidades. Afinal, elas foram imersas em eventos e tradições que fazem parte da sua cultura, modo de vida e como enxergam o mundo desde que nasceram. Por isso, quando decidem partir, são deixadas de lado pela família, incapazes de compreender as razões e motivações desse afastamento.
Isso fica evidente na trama quando o esposo de Esty não é retratado como uma pessoa má, mas sim como alguém que está apenas seguindo os valores que lhe foram transmitidos desde a infância. Essa fidelidade às tradições, no entanto, torna impossível entender os motivos que levaram à partida de sua esposa.
Entretanto, este dilema não se limita à comunidade hassídica, estendendo-se a diversas religiões ao redor do mundo. Nesse sentido, surge o questionamento: uma realidade imposta às pessoas desde o seu nascimento configura um crime ou apenas é fruto da preservação de uma tradição transmitida de geração em geração?