Pacto Brutal: sensibilidade em meio ao terror
- 11 de outubro de 2023
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- Theillyson Lima
- Posted in Sessão Cultural
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Como a série documental de Daniella Perez consegue resgatar o caso, com riqueza de detalhes e empatia, 30 anos depois do crime.
Helena Cardoso
Se você viveu nos anos 90 deve se lembrar de um grande caso que chocou o Brasil. A morte de Daniella Perez, a protagonista Yasmin da novela das oito “De Corpo e Alma“, pelo seu colega de trabalho Guilherme de Pádua (o Bira) faltando quatro dias para 1993, transformou a realidade em uma grande trama novelesca.
É com esse pensamento que a série documental Pacto Brutal começa. Glória Perez, mãe de Daniella e escritora de novelas – incluindo a que sua filha trabalhava -, já no início do primeiro episódio mostra sua indignação ao relembrar que o caso “ficou como um folhetinho barato na cabeça das pessoas”. E é exatamente isso que a produção tenta corrigir.
Com o primeiro episódio ficando disponível no dia 21 de julho de 2022, um dos principais objetivos da série da HBO Max é mostrar o lado da família e da própria Dani, já que na época, todos os holofotes foram direcionados aos assassinos. A direção de Tatiana Issa e Guto Barra faz com que o documentário ganhe aspecto testemunhal.
Amiga pessoal de Raul Gazolla, viúvo de Daniella Perez, Tati contracenava com o ator em outra novela na mesma época do caso e acompanhou de perto o desenrolar dos fatos. Foi essa proximidade, inclusive, que abriu as portas até Glória Perez, que nunca havia aceitado uma produção que contasse o que aconteceu com sua filha.
O caso
Não é necessário ter conhecimento prévio do caso para assistir ao documentário. A série consegue contextualizar todo o desenrolar do crime, os detalhes da investigação e vivências de pessoas próximas sem deixar dúvidas em quem nunca ouviu falar dos envolvidos. Eu, que só descobri quem era Guilherme de Pádua através do meme “morreu agorinha”, consegui entender as particularidades do assassinato bem o suficiente para desatar a falar sobre isso por horas assim que terminei de assistir ao documentário. Mesmo assim, se você quer ler sobre o assunto antes de consumir a produção, vou resumir do que se trata.
Já era noite quando a novela De Corpo e Alma encerrou o turno de gravações em 28 de dezembro de 1992. Naquele dia, foram gravadas as cenas do término do casal principal, Yasmin e Bira. Depois da liberação do trabalho, Daniella entrou no carro e se dirigiu ao posto de gasolina que ficava próximo do estúdio. Entretanto, o que ela não imaginava é que aquela seria a última vez que estaria acordada.
Colocada em uma emboscada, a atriz desceu do carro e deu de cara com Guilherme, que proferiu um soco tão forte que Daniella desmaiou. Com a garota desacordada, ele a colocou no carro e dirigiu até um matagal na Barra da Tijuca com a companhia de sua ex-esposa (na época atual), Paula Thomaz.
Depois disso os fatos ficam meio nebulosos e não é possível saber ao certo o que exatamente aconteceu, já que os assassinos deram diversas versões diferentes ao longo dos anos. Entretanto, a ideia geral do caso é que, chegando ao local escolhido, Paula e Guilherme desferiram 18 golpes de punhal contra a vítima, sendo 12 deles no coração.
A partir daí, a história se desenrolou durante anos. O rápido solucionamento do caso, que aconteceu na manhã seguinte, não serviu para garantir que a justiça realmente fosse feita. Glória Perez precisou fazer papel de detetive para conseguir uma pena mínima para os assassinos de Daniella enquanto a justiça procurava trazer a impunidade – mas isso você pode descobrir assistindo (e se revoltando no processo).
Escolha dos episódios
O motivo de não ser necessário o conhecimento prévio do caso para assistir ao documentário é que os episódios são feitos em ordem cronológica e se aprofundam em cada tema que envolva o ocorrido. Você termina de assistir a produção com a ideia geral do crime e com diversas informações que nunca foram levadas à polícia ou a qualquer outra emissora, revista ou similares.
O primeiro episódio começa com uma contextualização sobre Daniella. A família conta histórias da vida da atriz que fazem com que você se sinta próximo dela também. Logo depois, o dia e noite do crime são narrados passo a passo, desde o almoço na casa da mãe até o momento que o corpo é encontrado e o primeiro suspeito descoberto.
O segundo episódio, por sua vez, descreve os assassinos na época do crime: o que faziam, quem eram e como agiam perto de Daniella. É a partir daí que o espectador começa a enxergar as nuances dos motivos que podem ter levado ao assassinato da jovem.
Já no terceiro episódio Glória dá detalhes da própria investigação. Ela conta sobre como encontrou testemunhas, ouviu suas histórias e incentivou-as a depor sobre o caso. Para mim, esse é um dos momentos mais emocionantes da série. É no desenrolar do capítulo que você consegue ver, com clareza, a força, determinação e tristeza de uma mãe que foi impedida de viver seu luto para resolver algo que nem deveria ser sua obrigação.
Em seguida, no quarto episódio, o público se depara com o passado dos criminosos. Esse é o momento que a descrença e raiva afloram, afinal, como não adivinharam antes que o cara que só causava problemas poderia passar dos limites? Como ele ainda recebia palco? Não só Guilherme, mas Paula também demonstrou sinais de ser uma pessoa possessiva e agressiva, inclusive em relacionamentos antigos.
Entretanto, a raiva que surge no episódio quatro não se compara ao sentimento de impotência e revolta que o quinto – e último – episódio gera. O julgamento, realizado mais de quatro anos depois do crime, escancara a frouxidão da justiça. Escancara a injustiça de viver em um país em que duas pessoas responsáveis por tirar uma vida de forma brutal saem da prisão após cumprir aproximadamente 1/3 de sua pena e, o pior, com a ficha 100% limpa.
Produção única e diferenciada
Pacto Brutal parece ser como qualquer documentário: entrevista os envolvidos, ouve pessoas próximas, mostra cenários e objetos que fizeram parte do fato que se quer narrar. Entretanto, a série apresenta particularidades que, talvez, sejam o motivo de seu sucesso extremamente merecido.
O impacto inicial acontece quando, nos primeiros momentos do episódio um, você já se depara com fotos de Daniella morta na cena do crime em todos os ângulos possíveis. Isso choca, mas cumpre bem a função. Glória fez questão de incluir os retratos como forma de mostrar a brutalidade do caso.
Além da produção em si, a apuração é extremamente bem feita. Mais do que as fontes óbvias, os produtores foram atrás dos promotores, do juíz, dos frentistas do posto, das crianças que tiraram foto com a Dani, da diretora de uma das peças que Guilherme participou, da mulher que visitava uma das detentas presa no mesmo lugar de Paula… e por aí vai. Entretanto, dois personagens não aparecem: os assassinos.
Não incluí-los no documentário foi uma condição da própria Glória para que a série fosse gravada – é por isso, inclusive, que essa é uma produção da HBO, e não da Globo Play, que pretendia mostrar os dois lados da história. A decisão da mãe não foi do nada. À época, ficou evidente que o objetivo de Guilherme com tudo aquilo era a fama (não importa se de ator ou assassino), algo que conquistou rapidamente conforme o caso repercutia. A mídia, naquele momento, tirou o foco da vítima para colocar o foco no que os réus tinham a dizer através de inúmeras entrevistas e visitas a programas. Por isso, dá para se entender o porquê da escritora não querer participar de uma produção que envolva o nome dos dois.
Documentário pra que?
Mas qual o objetivo do documentário, Pacto Brutal, 30 anos depois? Embora tardia, a produção foi a única que verdadeiramente focou em Daniella e em sua família. Mais do que o caso, a luta da mãe pela justiça e pela reputação constantemente posta à prova da filha são o centro de uma obra completamente emocionante, revoltante, inspiradora, triste e mais mil sentimentos, todos ao mesmo tempo.
Observar Daniella morta é difícil. Ouvir o tio contando sobre o momento que foi reconhecer o corpo também. Ver Raul Gazolla narrar o momento em que Guilherme de Pádua foi até a delegacia e lhe deu um abraço de consolo, antes que soubessem que o ator era o autor do crime, dói. Escutar Glória Perez descrever quando se jogou sobre o corpo da filha, que começava a se decompor, no momento da exumação, destrói. Ver, com os próprios olhos, a prima de Daniella mostrar a camiseta que a jovem usava durante o assassinato, com os buracos causados pela arma do crime na peça, tira a sanidade de qualquer um.
Mas mesmo forte, pesada e difícil, a série cumpre o objetivo de acabar com as teorias da época que ainda permeiam o imaginário de quem acompanhou o caso. O documentário determina a verdade: Daniella teve a má sorte de esbarrar com duas pessoas capazes de literalmente matar por cobiça, vingança e inveja. Acima de tudo, a obra consegue lidar com o tema com maestria. Pacto Brutal, ainda que trate de um assunto tão pesado, é uma produção que alcança muito bem a sensibilidade e a competência.