
A sombra da fé: os abusos de João de Deus cobertos pela crença
- 13 de março de 2024
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- Theillyson Lima
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Entenda como os relatos da fé conseguiram encobrir os crimes de João de Deus.
Julia Viana
João Teixeira de Faria, nascido em 24 de junho de 1942, na modesta cidade de Cachoeira de Goiás, com sua origem humilde, trabalhou como agricultor e garimpeiro. Sua jornada espiritual deu início com nove anos de idade, segundo o relato em sua biografia escrito por Heather Cumming, relatando experiências sobrenaturais e visões espirituais e a cura de 50 pessoas, começando ali seus primeiros atendimentos.
Apesar de ter apenas dois anos de educação formal e nenhum treinamento médico, João de Deus ganhou notoriedade como curandeiro, viajando pelo Brasil como garrafeiro antes de se estabelecer em Abadiânia, Goiás. Naquele local ele afirmava receber entidades espirituais benevolentes, como Santo Inácio de Loyola, Dr. Fritz, dentre outros, que realizavam curas através dele, utilizando remédios naturais como a “garrafada”, produzida em tonéis, juntamente com procedimentos denominados de cirurgias espirituais.
O médium fundou em 1976 a “Casa de Dom Inácio de Loyola”, em Abadiânia, onde ele realizava seus atendimentos espirituais. No início das atividades, a casa recebia somente moradores da cidade e do arredor, mas com sua crescente popularidade, na medida em que seus feitos foram ganhando popularidade, o local começou a atender pessoas de todo o Brasil e logo depois de todo o mundo. Celebridades brasileiras e artistas de Hollywood se deslocavam até a cidade para se consultar e receber orientações de João.
Notoriedade da figura como médium
João de Deus foi respeitado e endeusado por seus seguidores, por mais de 40 anos, como um canal que os ligava ao divino, um líder espiritual. Além disso, o médium realizou eventos mostrando seus tratamentos espirituais em programas de televisão por países como Peru, Alemanha, Estados Unidos, Grécia, Suíça, Áustria, Austrália e Nova Zelândia.
Além de suas atividades espirituais, João de Deus é proprietário de instituições de caridade, uma fazenda de agricultura e pecuária, e é sócio de um garimpo. Suas supostas curas atraíam multidões para Abadiânia, que tornou a clínica a principal fonte de renda do município. No entanto, em meio à adoração de seus seguidores e ao sucesso financeiro, surgiram alegações de abuso sexual contra ele, lançando uma sombra sobre sua reputação e legado espiritual.
Por muitas vezes sua reputação foi manchada por acusações de uso indevido de respaldo científico para suas práticas, como o caso de exibir um artigo científico em sua casa para legitimar suas atividades paranormais, apesar dos resultados inconclusivos do estudo.
Mesmo com a controvérsia em torno de suas práticas, João de Deus continuou a atrair seguidores e pacientes em busca de cura espiritual. De acordo com sua biografia “John of God: The Brazilian Healer Who’s Touched the Lives of Millions”, João de Deus afirmava ter atendido mais de 8 milhões de pessoas até 2007. Curioso destacar que em 2015 o próprio médium optou por fazer uma cirurgia convencional em vez de um tratamento espiritual para a cura de sua própria saúde.
Cobertura da mídia
Com a ampla notoriedade que alcançou, João de Deus foi visitado por diversas equipes de reportagem na Casa Dom Inácio de Loyola. Essas visitas proporcionaram aos jornalistas a oportunidade de oferecer ao público as atividades realizadas no local. Em 14 de julho de 2005, a ABC apresentou uma reportagem no programa Primetime Live sobre João de Deus, destacando cinco pacientes com diferentes condições médicas que buscaram tratamento com o médium.
A ABC afirmou que em três casos houve alguma melhora, mas também trouxe à tona casos menos favoráveis, como o de David Ames, que faleceu de complicações após a cirurgia espiritual de João de Deus, e o de Lisa Melman, cujo câncer de mama, apesar de inicialmente declarado como curado, piorou progressivamente.
Em 2011, Susan Casey, jornalista estadunidense, compartilhou na revista O Magazine e no programa The Oprah Winfrey Show sua experiência ao entrevistar João de Deus no Brasil, discutindo sua busca por cura após a morte de seu pai em 2008. Casey descreveu a sensação de “flutuar” durante as sessões com João de Deus, alegando ter se comunicado com seu falecido pai.
Em março de 2013, Oprah viajou para o Brasil para conhecer João de Deus, entrevistando também pacientes esperançosos de cura. Após as acusações de abuso sexual contra João de Deus, em dezembro de 2018, Oprah removeu as entrevistas de seu site e expressou apoio ao movimento #MeToo, denunciando abusos contra mulheres.
Assédio sexual e prisão
As acusações de abusos sexuais e assédio contra João de Deus datam desde os anos 1980, quando ele foi processado por “atentado ao pudor” contra uma adolescente, processo que foi posteriormente extinto. Na série documental da Netflix, João de Deus: Cura e Crime, nos primeiros dois episódios é mostrado o caso de Rejane Araujo, que relata ter sofrido por uma tentativa de abuso por parte do médium.
Ela já conhecia a Casa de Dom Inácio de Loyola, pois era de família espírita, e no episódio a Rejane descreve que foi à procura de João de Deus para conseguir respostas de angústias pessoais e psicológicas. Chegando no local foi colocada em uma fila para ser apresentada ao líder, ao se aproximar ele recebeu a revelação de uma entidade de que ela também era uma médium e por isso deveria conversar com ele em sua sala particular.
Levada para essa sala para ter o encontro com João de Deus, Rejane relatou que ele dizia várias vezes que ela iria o curar por isso questionou ao líder sua capacidade mediúnica. João insistia que ela deveria curá-lo, depois desse diálogo ela recorda sentir ele abrir o zíper da sua calça e colocar sua mão em suas partes íntimas.
Zahira Lieneke Mous, uma coreógrafa holandesa, deu seu depoimento para o programa de entrevista do jornalista Pedro Bial contando que, “ele abriu a calça, colocou a minha mão no pênis dele e começou a movimentar a minha mão. Estava em choque”. No mesmo programa o apresentador revelou a história de 10 mulheres que acusam João de Deus de assédio sexual. Zahira foi a única que mostrou o rosto.
No entanto, em dezembro de 2018, as denúncias ganharam grandes proporções, com mais de trezentas mulheres relatando terem sido abusadas sexualmente por ele durante os atendimentos espirituais coletivos. As vítimas descreveram um padrão de comportamento, no qual João de Deus as selecionava sob a justificativa de “cura”, apenas para violentá-las quando estavam sozinhas com ele em sua sala.
Diante da quantidade de denúncias, os Ministérios Públicos de São Paulo e Goiás lançaram uma força-tarefa para investigar os crimes, recebendo centenas de mensagens e relatos por telefone. Até mesmo a filha do curandeiro, Dalva Teixeira, se uniu às acusações, alegando ter sido molestada por ele na infância.
Com toda a mobilização o Ministério Público de Goiás solicitou a prisão preventiva de João de Deus, que acabou se entregando à polícia após um breve período foragido. Em dezembro de 2019, ele foi condenado a 19 anos de prisão pelos crimes sexuais cometidos em Abadiânia. As revelações chocantes desencadearam uma reflexão profunda sobre a responsabilidade e a ética nas práticas espirituais, levando a Federação Espírita Brasileira a emitir orientações específicas sobre o cuidado e a transparência nos serviços espirituais.
Em setembro de 2023 o Tribunal de Justiça de Goiás condenou o médium João de Deus a 118 anos, 6 meses e 15 dias de prisão, inicialmente em regime fechado, em três processos por crimes de estupro, violação sexual mediante fraude e estupro de vulnerável. Somadas, as penas chegam a 489 anos e 4 meses de reclusão. Atualmente, com 81 anos, ele cumpre pena em prisão domiciliar.
O caso João de Deus, se faz crucial a notoriedade, pois os relatos de como sua jornada espiritual foi complexa e suas atividades controversas continuam a gerar debate e reflexão sobre o poder da fé, da cura e da responsabilidade ética na espiritualidade contemporânea.
Isso reforça que, ao demonstrar uma abordagem crítica e investigativa, isso não deve somente se contentar com a narrativa superficial de milagres e curas, mas que também esteja pronta para confrontar as sombras que podem se esconder por trás da fachada de santidade da religião.