Conversão Sexual: quando a ideia é se “livrar” de si
- 13 de março de 2024
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- Theillyson Lima
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Entenda os danos psicológicos e sociais das práticas de conversão sexual e a necessidade de combater tais procedimentos.
Sara Helane
Imagine a cena: em uma sala de estar o clima tenso se instala. Um jovem chamado Jared, visivelmente nervoso, luta para encontrar as palavras certas enquanto suas mãos tremem. Seus pais estão sentados em frente a ele, observando com uma mistura de curiosidade e apreensão. O jovem começa a falar devagar, pouco hesitante no início, mas ganhando coragem à medida que as palavras vão ganhando ritmo. Jared então expõe sua verdade e admite aos pais que é gay.
A montanha-russa de sensações que os pais do jovem sentiram oscilou entre choque, tristeza, confusão e até mesmo raiva. Após isso, a vida de Jared é carregada por “tentativas” de mudança de sua orientação sexual, pois seus pais são líderes religiosos que se preocupam muito em como seu filho será visto pela igreja e acreditam ainda mais que a homossexualidade de Jared é um desvio moral que pode ser corrigido.
Em outro contexto, Cameron, uma adolescente lésbica dos anos 1990 é enviada por seus responsáveis para um acampamento de “terapia” reparativa após descobrirem sua orientação sexual. Lá ela se aproxima de outros adolescentes, como Jane, uma garota criada em uma comunidade hippie, e Adam, um menino “dois-espíritos” enviado ao acampamento após seu pai se converter ao cristianismo.
Esses dois exemplos acima são partes do enredo dos filmes “Boy Erased: Uma verdade anulada” e “O Mau Exemplo de Cameron Post”, respectivamente. Apesar da última obra ser um filme ficcional, a primeira é baseada em uma história real e escancara um problema atual, a terapia de “conversão sexual” que também pode ser chamada de “terapia reparativa” e até “cura gay”.
A chamada “terapia reparativa” é um termo eufemístico que mascara a crueldade por trás de tentativas (apenas tentativas) de mudar a orientação sexual ou de gênero de pessoas. Instituições religiosas frequentemente alegam estar ajudando indivíduos a se livrarem da atração pelo mesmo sexo (AMS), utilizando métodos que beiram à tortura psicológica e, em alguns casos, até física. O Brasil, infelizmente, está longe de ser um bom exemplo nesse aspecto.
Apenas em 2023, o país testemunhou 257 casos de mortes violentas de pessoas LGBTQIA+, indicando uma morte a cada 34 horas. O relatório “Entre ‘curas’ e ‘terapias'” revela que mais da metade dos entrevistados no Brasil (52,8%) foram submetidos à terapia de conversão quando tinham entre 6 e 17 anos. O estudo identificou 26 formas de como as “terapias de conversão” são realizadas no país.
Através do tempo
Durante muito tempo a homossexualidade foi considerada um tabu mesmo que ela já tenha sido aceita em muitas civilizações antigas e que seus primeiros registros históricos datem de 1.200 A.C. Ainda assim, em alguns países, ser LGBTQIA+ é ilegal. Uganda, Arábia Saudita, Irã, Iêmen, Nigéria, Mauritânia e Brunei são os sete países do mundo que possuem pena de morte para atos homossexuais.
Com a chegada do século XX, mudanças sociais desafiaram a moral cristã da época, levando à adaptação de estratégias para rotular comportamentos sexuais como “normais” ou “anormais”.
A ideia de que homossexualidade era uma patologia abriu espaço para que, em 1952, surgissem os primeiros registros de práticas de conversão sexual que constavam entre as técnicas clínicas mais agressivas. Alguns dos procedimentos realizados são equiparados à tortura, como sessões de eletrochoque, privação de sono e até lobotomia utilizados nas primeiras “terapias”.
Práticas Reparativas
O youtuber Vitor diCastro, que é homossexual, passou por um processo de “terapia reparativa”. Em um vídeo de 2023, ele afirma: “todo o trabalho que essa terapia fez na minha cabeça não me fez deixar de ser gay, só me fez negar isso.” O relato é apenas um de tantos outros que ecoam o mesmo sentimento.
Práticas de conversão da orientação sexual ocorrem em mais de 100 países. As Nações Unidas pedem sua criminalização e apoio aos sobreviventes. Tais práticas não são terapias legítimas, não curam a homossexualidade e causam danos psicológicos. Embora frequentemente chamadas de “terapias” no debate público, é mais apropriado referir-se a elas como “práticas”.
Muitos dos sobreviventes a essas práticas, afirmam que além de abusos físicos, os abusos psicológicos são bem comuns nesse contexto, como humilhações públicas e tentativas de autonegação.
Quando se trata desse assunto, o termo “sobrevivente” pode ser tranquilamente utilizado para falar dessas pessoas, pois organizações como a American Psychological Association (APA) e o Conselho Federal de Psicologia afirmam que essas práticas não são apenas ineficazes, mas prejudiciais à saúde mental. Em muitos casos, podem levar a ideações suicidas e até ao ato em si.
Religião e Homossexualidade
É importante considerar os impactos negativos da rejeição religiosa sobre a saúde mental e o bem-estar das pessoas LGBTQ+. Um estudo publicado no Journal of Homosexuality descobriu que indivíduos que experimentam rejeição religiosa têm maior probabilidade de enfrentar problemas de saúde mental, incluindo depressão e ideação suicida.
As “terapias” de conversão não possuem base científica e são proibidas no Brasil baseadas nas resoluções do Conselho Federal de Psicologia. Porém, apesar dos profissionais não serem autorizados a realizar essas práticas, elas são realizadas pelas famílias dessas pessoas e por líderes e grupos religiosos.
Os grupos religiosos que aplicam essas tentativas de reorientação sexual se baseiam em crenças e doutrinas. No entanto, muitas organizações religiosas têm feito uma reavaliação do que acreditam e têm aberto espaço para inclusão e aceitação desse grupo tão marginalizado.
Ser ou não ser (mudar)?
As consequências psicológicas das práticas de conversão da orientação sexual podem ser devastadoras para os indivíduos envolvidos. Segundo a APA, as vítimas enfrentam uma série de desafios, incluindo perda significativa da autoestima, ansiedade, síndrome depressiva, isolamento social, dificuldade de intimidade, ódio a si, vergonha e culpa, disfunção sexual, stress pós-traumático, além de ideação e tentativas de suicídio.
Esses danos são particularmente graves, pois as vítimas são geralmente jovens entre os 16 e os 24 anos, uma fase crucial em que estão construindo sua identidade e são mais suscetíveis à influência de figuras de autoridade, como pais, professores, profissionais de saúde e líderes religiosos.
Em um mundo onde a diversidade deveria ser celebrada, infelizmente, ainda nos deparamos com tentativas desesperadas de suprimir a identidade e a orientação sexual das pessoas, em nome de crenças e dogmas religiosos. Essas tentativas perpetuam anos de discriminação e violência contra este grupo ainda marginalizado. Abrir os olhos para a realidade dessas práticas cruéis e não compactuar com as mesmas é garantir uma vivência religiosa que rejeita a discriminação.