“Religião é feita de gente”
- 13 de março de 2024
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- Theillyson Lima
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Conversamos com Magali Cunha sobre a importância social e cultural de algo que une a todos os brasileiros – seja pela aceitação ou pela rejeição.
Victor Bernardo
A religião é um ponto comum para todos os brasileiros. Acreditando ou não em uma divindade – seja ela qual for -, aceitando ou rejeitando dogmas, ela interfere diretamente na vida de toda a população, pois é parte intrínseca da cultura e sociedade do Brasil.
Buscando entender melhor a importância cultural da religião no Brasil e suas implicações na cobertura da imprensa de notícias que envolvem religiões, o Canal da Imprensa conversou com Magali Cunha, jornalista e doutora em Ciências da Comunicação com ampla experiência no estudo da religião.
Canal da Imprensa: Qual a importância cultural e social da religião no Brasil?
Magali Cunha: O Brasil é um país plural no que diz respeito a religiões. Quando os portugueses chegaram para colonizar o Brasil, já havia muitos grupos, nações indígenas com suas espiritualidades. Chegam os portugueses, depois são trazidos os escravos negros da África, que trouxeram diferentes perspectivas, também. Dessa mescla de indígenas, portugueses e negros, nasceram expressões religiosas mais distintas, depois chegaram outros estrangeiros de fora, trazendo suas religiões.
Pensar em religião no Brasil é pensar em um elemento muito forte que dá sentido à vida de muita gente. [Também tem sentido de] resistência e sobrevivência, como foi no período da escravidão, também do ponto de vista indígena, várias religiões têm expressão de resistência e sobrevivência a toda a opressão sofrida ao longo da história da colonização. Até hoje, nós temos muitas experiências de periferias, de grupos excluídos socialmente que têm na religião essa leitura de uma presença divina que marca a força, que marca a resistência. Então há uma importância cultural e social muito importante historicamente das religiões no Brasil.
Existem problemas sociais no Brasil que podem ser atribuídos à religião?
Existem, sim, problemas sociais que podem ser atribuídos à religião. O catolicismo, por exemplo, [foi] utilizado para oprimir e para respaldar a colonização. Durante a ditadura militar, também houve uma parcela de grupos religiosos cristãos, especialmente católicos e evangélicos, que apoiaram a ditadura. A instrumentalização política das religiões, principalmente do cristianismo, está presente na história do Brasil desde a colonização e passou por diversos momentos da história, apesar de o Brasil ser um país constitucionalmente laico.
[Também existem] problemas que podemos identificar como a intolerância entre religiões, a chamada guerra religiosa, que se estabelece entre grupos religiosos – principalmente dos grupos majoritários frente a grupos minoritários. Isso aconteceu no Brasil durante o período do domínio do catolicismo como religião oficial até a república, em que grupos religiosos, como os próprios evangélicos, foram perseguidos e reprimidos nas suas práticas. As religiões de matriz africana, as expressões religiosas indígenas também eram reprimidas, demonizadas, e isso mesmo depois da república, quando a oficialidade do catolicismo foi abolida. A perseguição às expressões religiosas de matriz afro, que persiste até hoje, está muito atrelada ao racismo, que é um outro problema social. Então, quando nós temos intolerâncias reforçadas nas expressões religiosas, essa é uma questão muito séria.
Por outro lado, existem melhorias sociais causadas pela religião?
Essa questão da resistência histórica, do fortalecimento de comunidades e populações periféricas, oprimidas historicamente, que a religião vem reforçar. Também a ação social de vários grupos religiosos, a grande maioria das religiões estão presentes na sociedade brasileira com ação social, seus centros comunitários prestando serviços aos mais diversos, inclusive em parceria com o Estado. Então, as religiões têm esse elemento significativo.
Há como mensurar pontos positivos e negativos em vivências religiosas?
Vivências religiosas têm seus pontos positivos e negativos, sim. As religiões são instituições humanas, formadas por seres humanos, pessoas que levam para lá os jeitos de ser, de viver, personalidades, caráter, pessoas que lideram e que são seres humanos e que cometem erros, muitas vezes praticando até crimes.
Há muitos históricos de ilegalidades, práticas de corrupção, abuso sexual, em todos os grupos religiosos isso vai ocorrer. Isso não é da religião, mas das pessoas que acabam misturando sua visão de mundo com a experiência religiosa.
Apontar esses problemas pode ser considerado intolerância religiosa?
A intolerância religiosa ocorre quando um determinado grupo religioso sofre discriminação, preconceito por ser este grupo religioso. Quando ele é tratado de forma pejorativa e, quando a intolerância é radical, se considera que esse grupo não deveria nem existir. Ocorrem situações até de violência física contra determinados grupos.
O limite é justamente a crítica que chega ao seu extremo a ponto de se enxergar uma desqualificação de determinado grupo. Você observar pontos negativos de forma objetiva, crítica e respeitosa, não é intolerância. Fazer uma avaliação dos pontos negativos que envolvem certos grupos religiosos ou certas lideranças que passam, muitas vezes, até por ilegalidades não é intolerância. Mas passa a ser quando a crítica chega ao extremo de diminuir o grupo religioso e de até considerar que ele não deva existir.
Que tipo de mudanças sociais e culturais poderiam potencializar aspectos positivos das religiões no Brasil e ajudariam a mitigar ou diminuir consequências negativas?
Um processo educativo e comunicativo que sejam reflexo da pluralidade que nós temos. Um processo educativo formal, nas escolas e universidades, que trabalhe a perspectiva da pluralidade religiosa. Que ainda que alguém não tenha uma religião e que decida não se vincular ou praticar uma religião, mas que seja respeitoso da experiência religiosa do outro. Esse processo educativo seria fundamental para reforçar esses aspectos positivos e diminuir essas consequências negativas.
[Os problemas] sempre vão existir, porque religião é feita de gente e onde tem gente, existem elementos negativos na coexistência. Mas essa coexistência pode ser ressaltada do ponto de vista religioso sim, com processos educativos e comunicativos. Uma cobertura jornalística que seja abrangente, oferecimento de conteúdos e mídias que possam trazer essa dimensão da pluralidade, tudo isso são processos que colaboram muito com a potencialização dos aspectos positivos das religiões.
Como você vê o papel da mídia – especificamente do Jornalismo – em casos que envolvem a religião?
Eu vejo uma mídia que não trabalha isso na perspectiva plural. Há uma mentalidade no jornalismo brasileiro que é formatada pela hegemonia católica que foi historicamente construída. Há uma hegemonia política, histórica e cultural do catolicismo e isso formatou, ao longo da história, a cobertura jornalística de religião e continua formatando, apesar de ser cada vez maior a dimensão da pluralidade.
Apesar de a gente ter todo esse mosaico religioso, o jornalismo não enxerga assim a pluralidade. Tudo que ocorre em torno da religião no Brasil é observado no jornalismo a partir dessa perspectiva católica.
Jornalistas estão qualificados para cobrir tópicos religiosos com a sensibilidade requerida?
Não, os jornalistas não estão qualificados. Não compreendem o lugar da religião, não compreendem a pluralidade religiosa que existe no Brasil, mal sabem ler as diferenças entre religiões, mal sabem ler as diferenças entre grupos, por exemplo, cristãos que estão no Brasil. Dentro do catolicismo há diversidade, entre evangélicos a diversidade é enorme, então não há qualificação suficiente, muito por conta da nossa formação, e esta é uma demanda urgente, dado o lugar cada vez mais destacado que as religiões têm ocupado na cena pública.
Em relação à formação, qual é o problema que envolve a cobertura de religiões?
Nós não temos nas escolas de jornalismo no Brasil suficiente formação para o jornalismo especializado. A gente tem jornalismo especializado em várias áreas, dá-se muita ênfase em política, em economia, em cultura, mas na questão da religião a ênfase é praticamente zero. Algumas escolas de jornalismo que são ligadas a universidades, faculdades confessionais têm uma certa preocupação e abrem algum espaço, mas também não é suficiente pelo que nós observamos.
Como a mídia pode ajudar a população a superar as barreiras causadas pelas diferenças religiosas no Brasil?
Processos comunicativos têm que ser desenvolvidos por mídias de notícias, documentários, produções educativas, enfim, por grupos que trabalham com produções midiáticas, com mais ênfase, mais destaque às religiões. É preciso mostrar essa diversidade, mostrar essa pluralidade, não deixar de ser críticos, de maneira respeitosa, daquilo que deve ser criticado, mas ressaltando esses elementos que fazem parte da vida cotidiana das pessoas do ponto de vista positivo.