O jornalista na periferia – Entrevista
- 14 de setembro de 2022
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O papel do jornalista ao fazer reverberar as múltiplas vozes da periferia.
Lucas Pazzaglini
O jornalismo de periferia, apesar de estar ganhando visibilidade e audiência, ainda não é tido como um objeto de interesse geral, por vezes porque não tem seu valor reconhecido. Para esclarecer a necessidade de dar visibilidade a essa forma de jornalismo, o Canal da Imprensa entrevistou a Dra. Mara Rovida Martini.
Mara é graduada em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo, Doutora em Ciências da Comunicação e Mestre em Comunicação Social. Tem experiência como jornalista e docente na área de comunicação, com ênfase em jornalismo. Publicou os livros “Jornalismo das periferias:o diálogo social solidário nas bordas urbanas” (CRV), “Jornalismo em trânsito o diálogo social solidário no espaço urbano” (Edufscar) e “A segmentação no jornalismo – sob a ótica durkheimiana da divisão do trabalho social”.
Canal da Imprensa: Por que o jornalismo de periferia se tornou seu objeto de estudo?
Mara Rovida Martini: No livro, “Jornalismo das periferias” (CRV, 2020), eu falo um pouco sobre como as ideias de pesquisa surgem e, claro, foco em como uma ideia inicial desaguou no meu estudo. Em grande medida, isso aconteceu de forma não planejada porque eu descobri por acaso o trabalho das jornalistas à frente do “Nós, mulheres da periferia” durante um evento que organizei em 2017. Uma das convidadas de uma mesa de debate sobre a questão de gênero no jornalismo, a jornalista Lívia Lima, falou sobre o trabalho do coletivo, hoje uma empresa jornalística, e eu fiquei curiosa. Para conhecer melhor a produção do “Nós”, entrei no site e fiz uma pesquisa exploratória – uma pesquisa preliminar em que organizei a leitura do material publicado de forma a identificar a linha editorial e o perfil da produção. Ao fazer esse estudo exploratório, descobri que existiam outros produtores de jornalismo em atuação nas periferias de São Paulo e que eles tinham, inclusive, criado uma rede de apoio, a Rede Jornalistas das Periferias. Essa descoberta me mostrou um universo potencial de pesquisa. Foi assim que eu decidi estudar melhor esse assunto e por isso o jornalismo das periferias se tornou não o objeto da minha pesquisa, mas o foco de um estudo desenvolvido em diálogo com os sujeitos que produzem essa comunicação. É assim que eu vejo.
CI: Qual a importância de dar visibilidade para a periferia por meio do jornalismo?
MRM: O jornalismo é uma atividade que, eticamente, precisa trabalhar com a polifonia e a polifonia social tem se mostrado um espaço inacessível para parcela importante da população. A constatação de que uma parte da população quase nunca é ouvida e, portanto, quase nunca fala nos espaços de visibilidade criados pelo jornalismo mainstream não é nova. Nesse sentido, a presença e a participação dessa parcela da população no debate público fica impossibilitada. Isso implica em entender que quando se defende a necessidade de contemplar a periferia na cobertura da imprensa, não se está falando de um lugar recortado no mapa, mas sim de pessoas/sujeitos que produzem esse lugar. Em outras palavras, quando se fala da periferia, na verdade se está falando dos periféricos. Se a gente acredita que é importante manter a pluralidade de ideias e uma participação democrática no debate público, então é importante ouvir e reverberar as vozes (e são múltiplas) de quem vive a experiência das periferias das grandes metrópoles.
CI: Como desenvolver um jornalismo de qualidade e verdadeiro nesta região?
MRM: Não existe receita para ser aplicada. Mas se há quem possa demonstrar como colocar isso em prática, essa pessoa, ou melhor, essas pessoas são os jornalistas à frente de iniciativas de comunicação espalhadas pelo Brasil. Eu conheço melhor as de São Paulo, mas existem muitas em outros lugares do país. Assim, acho que essa é uma pergunta a ser feita para o pessoal da “Periferia em Movimento“, do “Desenrola e não me enrola“, da “Agência Mural de Jornalismo das Periferias“, da “Alma Preta“, do “Nós, mulheres da periferia”, entre muitos outros.
CI: O que é o jornalismo dialógico e por que ele é importante?
MRM: Quando a gente fala de “dialogia” no jornalismo, a gente está pensando num processo de comunicação pautado pela participação ativa de todos os sujeitos, isto é, o jornalista, fontes de informação e, até mesmo, o público. O jornalismo, pautado nessas premissas, implica numa postura de mediação social por parte do jornalista que ouve e se deixa afetar pelos sujeitos da pauta. A importância dessa postura de quem produz o jornalismo está diretamente relacionada ao compromisso social assumido por essa categoria profissional, isso tem implicações técnicas (como o jornalismo é produzido), éticas (o compromisso social mencionado) e estéticas (a forma como essa produção é apresentada).
CI: Como o “papel dialógico” do jornalista pode tornar conhecido pontos positivos e negativos das periferias?
MRM: Não sei se chamaria de “papel dialógico”, mas talvez a postura dialógica do jornalista poderia tornar mais visível as diferentes experiências e, portanto, as variadas contribuições das pessoas que vivem nas periferias. A pauta desses territórios também é diversa, incluindo assuntos e temas muito variados, assim não faz sentido pensar nas periferias apenas quando a pauta é violência ou problemas de infraestrutura urbana e demandas sociais de toda ordem. Além disso, como disse em outro momento, ao falar das periferias, estamos falando dos sujeitos que produzem esses territórios, estamos falando dos periféricos e eles podem ser fontes variadas, isso significa que podem figurar como personagens, mas também como especialistas. Olhar o território das periferias de maneira mais afetuosa – não no sentido de carinho, mas no sentido de abertura para ser afetado – pode ser revelador de potencialidades e possibilidades.
CI: Como melhorar o jornalismo que é feito agora?
MRM: Acho que um bom termo para se alcançar um jornalismo com potencial de fomentar o diálogo é a escuta atenta; o jornalista deixar-se ser afetado pelas fontes de informação, evitando as armadilhas da facilidade apresentada pelo mal-fadado jornalismo declaratório. Mas essa constatação não é nova nem minha em primeira mão, há muito tempo isso é discutido por vários teóricos do jornalismo, incluindo a minha querida professora Cremilda Medina que defende essa postura do diálogo há pelo menos 45 anos.