“O golpe das fakenews veio desacreditar a importância do trabalho jornalístico”
- 5 de setembro de 2017
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- Thamires Mattos
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Boataria, fake News,notícias alternativas, pós-verdade…
A palavra do ano de 2016, segundo a Oxford Dictionaries, da Universidade de Oxford gerou uma série de discussões sobre os rumos das notícias e do conceito de verdade. Para falar desse assunto, a repórter Victória Coelho conversou (em nome do Canal da Imprensa) com o sociólogo e jornalista Ciro Marcondes Filho. Ele é Bacharel em Ciências Sociais e Jornalismo (USP/SP), doutor pela Universidade de Frankfurt, pós-doutor pela Universidade de Grenoble (França), titular da Cátedra UNESCO José Reis de Divulgação Científica, professor titular da ECA-USP desde 1987 ecriador da Nova Teoria da Comunicação, que dá bases para a constituição do Campo da Comunicação nas ciências humanas a partir do amadurecimento e da operacionalização do conceito de comunicação, assim como de um modo específico de sua investigação, o metáporo.
Canal da Imprensa: O que é “pós verdade”?
Ciro Marcondes: Pós-verdade parte de um mito na produção jornalística, a saber, o de que a imprensa seria um veículo da verdade, buscando desvendar todas as deturpações ou falsidades na transmissão de notícias. Quer dizer, só falam em “pós-verdade” aqueles que acreditam que havia uma verdade que a imprensa noticiava. Ora, já de muito tempo se sabe que não há verdade alguma, todas as manifestações discursivas humanas são subjetivas e valorizam um aspecto em detrimento de outros.Portanto, sempre há deturpações. Umas maiores, outras menores. Os casos mais ostensivos se dão com as notícias que envolvem interesses políticos, econômicos ou ideológicos imediatos dos proprietários dos meios de comunicação, dos patrocinadores e da comunidade de interesses à qual o jornal serve. Deturpações menores ocorrem nos serviços, nos informes de resultados, nos fatos em relação aos quais não se questiona a validade das informações. Os resultados do futebol, a programação de cinema, os filmes da TV, também eles podem sofrer variações de cobertura conforme as paixões dos próprios jornalistas, mas trata-se, no caso, de “leituras” subjetivas sobre algo indiscutível. Há, por fim, os fatos indiscutíveis como a data de hoje, a previsão do tempo, mudança do horário de verão que envolve pouca escolha.Dessa forma, o noticiário jornalístico será sempre uma escolha, uma interpretação de fatos, um certo tipo de “ajeitamento” da realidade segundo as subjetividades dos jornalistas. Por isso, “pós-verdade” é um termo ruim para caracterizar a crise atual do jornalismo, que preferiria chamar de fakenews, que também tem seus problemas, mas, pelo menos, expurga da discussão o conceito de “verdade” que sempre foi uma farsa na atividade jornalística.
Canal: Por que o fenômeno da “pós-verdade”só passou a ser discutido agora?
Marcondes: Essa é uma questão relevante. Somente hoje em dia a opinião pública se deu conta de que está sendo objeto de manobras fantásticas para ludibriá-la, especialmente, como eu disse, em momentos de decisão política ou às vésperas de eleições. E isso por causa da facilidade de circulação de fatos e de ocorrências pela internet, especialmente pelas redes sociais. No passado, os grandes canais de divulgação eram restritos a certos grupos econômicos ou de poder – a grande imprensa, emissoras de rádio e de televisão. Naturalmente havia os tabloides, as revistas especializadas, os impressos de divulgação de acontecimentos mas seu alcance era restrito, o universo de leitores, ouvintes ou espectadores restringia-se um campo geográfico pequeno.A internet 2.0 e a criação das redes sociais expandiram a pequena divulgação de ocorrências para um universo fantasticamente maior do que se obtinha antes. Isso provocou alguns resultados, como, por exemplo, a crise da grande imprensa diante da concorrência dos nanicos; a socialização da atividade jornalística, agora não mais restrita àqueles que trabalhavam em jornais, revistas, rádio, TV e cinema; o desaparecimento da checagem da matéria junto às fontes; a circulação de temas e personagens tabus da sociedade (pedofilia, racismo, propaganda totalitária); o fenômeno da viralização, em que notícias não necessariamente verídicas passaram a ter a mesma divulgação e competir com notícias de veracidade mais comprovada.
Canal: As redes sociais são o criadourodesses “fatos alternativos”?
Marcondes: Há a concorrência de vários fatores: a boataria, a bisbilhotice, as fofocas não são ocorrências novas. As sociedades humanas sempre conviveram com a intriga, com o fato de pessoas necessitarem depreciar o outro para obter com isso vantagens. Portanto, no comportamento social das pessoas esses fatos sempre existiram. A eles se acrescentam pelo menos outros dois: a facilidade tecnológica com que se pode expandir essas práticas e certa liberalização daquilo que constituiria a parte perversa dos relacionamentos humanos. A moral social, que dependia apenas do relacionamento entre indivíduos, sempre cuidou de preservar certas perversidades em espaços não públicos, em reprimi-las, em intimidar as pessoas no sentido de fazê-las envergonhar-se por alimentar seus preconceitos e seus clichês em relação aos demais. A internet, ao contrário, não é formada por pessoas ou por algum tipo de corpo social de preservação da moral; ao contrário, ela é totalmente amoral, como sistema técnico não se colocam questões relativas ao bem-estar do outro, à preservação de suas particularidades e de suas diferenças.
Canal: Quais os prejuízos políticos e sociais são produzidos por este fenômeno?
Marcondes: Hoje em dia estamos assistindo os efeitos deletérios das falsas notícias. Constata-se uma total desorientação da opinião pública, do eleitorado, das pessoas em geral quando são objeto do bombardeio dessas falsas notícias. Existe no seio da população uma confiança atribuída, herdada, aos veículos de comunicação. No passado se dizia que o noticiário das 20h substituía a pregação dominical do padre na igreja. De certa forma, os telejornais se impuseram como veículos de condução das pessoas: eles tanto advertem aos perigos iminentes – na verdade, aos perigos que seus próprios proprietários têm diante de certos políticos, de certas tendências sociais, de certas viradas ideológicas – quanto propagam modas, consumos, práticas como se fossem as melhores ou naturais. Quer dizer, há, por parte da população, uma crença espontânea e automática naquilo que a televisão, os jornais, as emissoras de rádio vendem, não exatamente por que são boas, mas porque o veículo as promove.No caso atual, diante da desorientação das pessoas diante de notícias veiculadas, e que depois são desmentidas, somadas a novas boatarias, cria-se, por consequência, uma perda de rumo por parte das pessoas, visto que a maioria delas não tem outra fonte de informação. O fato de termos hoje um presidente nos Estados Unidos que não conhece absolutamente nada, não tem ideia do que se passa e acha que pode resolver alguns conflitos, que toma decisões que depois tem que cancelar ou que propõe medidas mirabolantes e absolutamente irrealizáveis, mostra que hoje os critérios de avaliação do eleitorado estão praticamente arrasados. Não por acaso, eleitores elegem em São Paulo um prefeito que não tem noção do que é a cidade, de seus dilemas, ou das estratégias da população em tentar resolvê-las, vindo, ao contrário, com medidas que demonstram um divórcio total com o que é a cidade de fato.
Canal: O jornalismo perdeu o crédito por conta da pós-verdade?
Marcondes: O jornalismo está sofrendo um duro golpe. Mas não é o primeiro. Nas origens, o jornalismo atendia a um pequeno grupo de burgueses que buscava conquistar posições políticas, numa sociedade em que o Estado de Direito acabava de se instalar. Não era democrático apesar de ser múltiplo. As classes trabalhadoras tiveram que esperar várias décadas para fazer seu próprio jornal; as mulheres batalharam ainda mais tempo para poder se candidatar e fazer valer suas posições na sociedade. De qualquer forma, apesar de a grande e média imprensa ser veículo de uma única voz na sociedade, espécie de supermegafone através do qual a voz de uma única pessoa impunha-se como se fosse a voz de todos, mesmo assim, os nanicos conseguiam desmascará-la e mostrar outra visão da realidade. Só isso justificou o jornalismo: a possibilidade de quebrar o monopólio de um único, que possui capital e meios tecnológicos para fazer sua voz prevalecer, e fazer com que a voz de outros aparecesse. Se o jornalismo já teve crédito em seus 200 anos de existência, foi somente e por causa disso.Ora, o que acontece desde que se implantaram as tecnologias de comunicação nas redações de jornal, por volta do ano 2000, foi uma crescente desvalorização da importância do profissional de imprensa, sua proletarização, sua substituição por jornalistas freelancers e dessindicalizados, e a precarização geral da profissão.O golpe das fakenews veio desacreditar ainda mais a atuação e a importância do trabalho jornalístico, inclusive por serem colocadas em funcionamento máquinas – robôs – para a produção não apenas de noticiário informativo, mas também de fatos inventados para multiplicar seu poder de alcance e influência.