
No trono de Pedro, a mão dos homens
- 14 de maio de 2025
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- Theillyson Lima
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Por trás da liturgia e da fumaça branca, “Conclave” expõe a humanidade das instituições religiosas.
Victor Bernardo
Poucos lugares no mundo carregam tanta aura de segredo, solenidade e poder quanto o Vaticano. Em tempos de conclave, essa mística é ainda maior. Entre cardeais em silêncio, paredes adornadas por séculos de história e tradições milenares, o Vaticano transforma a solenidade em espetáculo. No cinema, esse rito sempre despertou fascínio – e “Conclave”, dirigido por Edward Berger, retoma esse olhar de forma quase profética.
Inspirado no livro homônimo de Robert Harris, o filme é mais do que uma ficção sobre a escolha de um novo pontífice. É uma tentativa de narrar o invisível: as tensões, as manobras e os silêncios que moldam o futuro da instituição mais antiga do Ocidente.
Enquanto o público espera fumaça branca, a obra oferece névoas políticas, dilemas morais e um convite a olhar além da liturgia. Porque, mesmo envolto em rituais, o conclave é, antes de tudo, uma disputa de poder – e o cinema sabe muito bem como explorar isso.
A representação do Vaticano
“Conclave” se constrói em um cenário de tensão contida, em que o silêncio diz tanto quanto as palavras. O Vaticano é retratado com uma reverência estética que beira o claustrofóbico. Cada corredor estreito, cada vitral, cada detalhe dos trajes cardeais ajuda a reforçar a ideia de uma instituição fechada em si mesma.
Visualmente, o filme aposta na sobriedade. A fotografia é marcada por tons escuros, opacos, e uma iluminação muitas vezes lateral ou difusa, como se estivéssemos espiando algo que não deveríamos ver. Berger acerta ao evitar o excesso e optar pela elegância, que reforça o peso simbólico do espaço. A cenografia, embora recrie ambientes do Vaticano com liberdade, mantém uma verossimilhança suficiente para o espectador imergir com facilidade.
Na atuação, destaque absoluto para Ralph Fiennes, que interpreta o cardeal Lomeli. É por meio dele que se acompanha o labirinto do conclave – com destaque para suas próprias crises de fé, dúvida e responsabilidade. Fiennes entrega um desempenho contido, que sustenta o tom do filme sem cair no exagero. O elenco de apoio, composto por atores que dão corpo à diversidade política e ideológica do colégio de cardeais, reforça a ideia de que o Vaticano é um tabuleiro cuidadosamente montado.
Narrativamente, o filme escolhe o caminho da introspecção e da tensão crescente. Não há vilões evidentes, nem heróis messiânicos. O que há é uma instituição que precisa decidir seu futuro. Ao representar o Vaticano dessa forma, o filme evita tanto a espetacularização quanto a canonização. O que se vê é uma Igreja humana, na qual o sagrado convive com o humano, e a fé, com a dúvida.
O que o filme acerta, e o que simplifica
Por se tratar de um processo envolto em segredo, o conclave sempre ofereceu margem à ficção. Ninguém filma o que se passa ali dentro – só imagina, especula, dramatiza. A trama parte justamente dessa impossibilidade de acesso para construir uma narrativa verossímil, mas obviamente fictícia. E nesse jogo entre realidade e licença poética, o filme acerta em alguns pontos, mas também suaviza ou exagera em outros.
Entre os acertos, está o cuidado com os rituais. O momento da entrada dos cardeais na Capela Sistina, o juramento de sigilo, o isolamento absoluto do mundo exterior, a sequência das votações – todos esses aspectos são reproduzidos com fidelidade ao que se conhece oficialmente sobre o conclave. Mesmo os detalhes da liturgia, os gestos e a atmosfera de recolhimento estão presentes, sem excessos dramáticos.
No entanto, também há concessões. A construção de personagens com posições políticas claramente delineadas, embora útil à narrativa, tende a simplificar as complexidades ideológicas. As tensões internas entre progressistas e conservadores são reais, mas desconsideram as principais divisões eclesiais – entre canonistas, liturgistas e pastoralistas – ou a disputa sobre sinodalidade, por exemplo. “Conclave” transforma as nuances em arquétipos: o ambicioso, o pacificador, o misterioso. É um recurso narrativo legítimo, mas que se aproxima mais da metáfora do que da realidade.
Outra liberdade significativa está na centralidade do protagonista. Embora o cardeal Lomeli seja um personagem cativante e complexo, o papel que assume nos bastidores – com acesso a informações sigilosas, articulações e investigações – ultrapassa o que se esperaria de um “mestre de cerimônias” dentro do processo real.
Ainda assim, essas escolhas não tiram o valor da obra. Se o espectador não deve tomar o filme como um retrato fiel da Igreja, pode, ao menos, tomá-lo como provocação legítima: quem realmente decide o rumo da Igreja Católica quando o mundo todo aguarda por fumaça branca?
O poder é sempre humano
Ao tentar dramatizar o conclave, Berger não revela os segredos da Igreja, mas como se imagina que eles aconteçam. É uma ficção que entende seu lugar: não pretende competir com a teologia, nem com o jornalismo. E faz isso sem desrespeitar o sagrado, ainda que o observe com olhar cético.
Em tempos de transição no Vaticano, o filme ressoa com força simbólica. Reforça que, por trás da fumaça branca, há decisões humanas. Há negociações, hesitações, votos e medos. E talvez não haja lente mais apropriada para discutir isso do que a do cinema – que não pretende ser fiel aos fatos, mas sensível às emoções.
“Conclave” não revela os segredos do Vaticano, mas lembra ao espectador que, mesmo sob vestes sagradas, o poder continua sendo terreno. Ao expor as disputas, hesitações e silêncios que cercam a escolha de um Papa, o filme revela menos sobre a fé e mais sobre a política disfarçada de liturgia. Porque, no fim, o conclave não é apenas um ritual espiritual: é um jogo de forças. E o cinema, ao espiar por essa fresta, mostra que todo lugar de poder, por mais divino que se proclame, ainda é simplesmente humano.