Fotografia não é realidade, mas processo de construção social
- 11 de novembro de 2015
- comments
- Thamires Mattos
- Posted in Entrevista
- 1
Uma imagem não é espelho da realidade, consequentemente nenhuma fotografia deveria tomar para si o status de flagrante do real. Cada imagem capturada pelas lentes da camêra pode ser utilizada pelas mídias com fins de direcionamento ideologico. Uma fotografia é isto, um fragmento capturado que começa a refazer sentidos e construir o real, novo real, assim que é colocada em exposição. Para falar a respeito da imagem, fotojornalismo e o poder que podem exercer na formação da opinião a repórter Juliana Dorneles conversou com o jornalista Celso Bodstein. Ele é professor do curso de Jornalismo da PUC-Campinas e doutor em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas com enfase em fotografia.
Canal da Imprensa: Uma imagem tem mais poder ideológico que outras linguagens? Porque?
Celso Bodstein: Tendo a ver a ideologia no conceito dos frankfurtianos, para os quais o tema se refere a ideias e ações que, ao mascarar um objeto e revelando apenas sua circunstância de superfície, atua como instrumento de persuasão. Portanto, uma cena de ilusão. Nesse sentido, a fotografia foi muito utilizada como extensão de ideias em que um poder constituído tenta subjugar povos e nações. Para esse fim a fotografia mostrou-se muito eficaz, por exemplo, na propaganda nazista, na consolidação da União Soviética, e também como exaltação dos modelos néo-liberais através da publicidade e do incentivo ao consumo. As razões desse sucesso, nesse caso, ligam-se a uma imagética afeita a causar de imediato seus efeitos de convencimento, através da potencialização de signos ancestrais (arquetípicos) voltados ao desejo de felicidade e poder. Na retórica dos textos e mesmo no cinema o processo é outro, por vias mais longas de absorção.
CI: Uma fotografia é sempre espelho da realidade?
Bodstein: Não. Não há essa potência de “revelação” de objetividades. A imagem é sempre uma distensão “arbitrária” da realidade. Transforma o tridimensional em representação bidimensional. Elege elementos, enfatiza aspectos e enfraquece outros. O enquadramento, por exemplo pode ser tido como elaboração ideológica, principalmente no campo do fotojornalismo. Portanto, a fotografia é uma intervenção em seu referente, a estetização de seu índice e a consequente configuração de ícones. A imagem sofre processos de ressignificação quando exposta à circulação, já que pode haver choques entre as pretensões do fotógrafo e a recepção, onde repertórios culturais entram em choque. Impossível à fotografia contemplar a plenitude da realidade, até por ser a realidade uma construção social em progresso.
CI: Uma imagem vale mais que mil palavras?
Bodstein: No sentido de se transformar em sínteses culturais, sim. A fotografia tem um poder sui-gêneris de ligar a consciência a gamas de emotividades, já que provoca acesso imediato do observador a memórias afetivas, traumáticas, ontológicas, de historicidades e dos desejos. Penso que a imagem tem o poder de fabular a experiência do vivido, como, talvez, um hai-kai.
CI: Na sua opinião, as imagens têm um poder manipulador a ponto de mudar opiniões?
Bodstein: Sim, na medida em que são forte fator de convencimento. Na verdade, a “cópia” da realidade que a imagem produz é tomada por muitos não como o resultado de uma elaboração e sim como espécie de comprovação, prova, testemunho, certezas e convicções (na metáfora do “ver para crer”). A fotografia aí não é entendida como um ato de verossimilhança, onde a representação se aproxima ambiciosamente do representado até “assumir” sua identidade. Por outro lado, a fotografia pode remeter a universos impensados, propiciando contemplações profundas, por exemplo em suas estetizações artísticas. A fotografia tem o poder de provocar auto-conhecimento e novas qualificações do mundo, o que, por certo, alterna opiniões e derruba preconceitos.
CI: Uma imagem pode passar despercebida por alguém sem deixar marcas?
Bodstein: Difícil questão. Penso que há, atualmente, uma banalização do ato fotográfico. Isso pode ser observado como tendência nas milhões de imagens produzidas, através principalmente da profusão de câmeras acopladas a celulares. Praticamente todos fotografam dentro de determinados automatismos – o que faz com que as fotos sejam muito parecidas (selfies, comemorações, natureza, infância, urbanidades, retratos etc). Tais estereótipos visuais inibem um pouco, penso, a disponibilidade do olhar para o que realmente poderia valer à pena. Caetano Veloso tem uma frase que cabe bem aqui; “ficamos cegos de tanto ver”. Portanto, são muitas as imagens que passam por nós sem deixar novas marcas, pois já a vimos exaustivamente. Daí a importância conceitual da chamada fotografia contemporânea (entendida, aqui, como exercício de processos experimentais). Ela pode ser tomada, muitas vezes, como espécie de redentora do olhar. Essas fotos são concebidas sem normas, padrões ou estilo hegemônico; pelo contrário, são criações autorais e expandem nosso senso de moralidade e às vezes re-editam nossas marcas do imaginário.