As favelas vistas (muito) de longe
- 14 de setembro de 2022
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O que grandes jornais estrangeiros noticiam sobre as comunidades mais estereotipadas do Brasil.
Mariana Santos
O Brasil é constantemente observado por países ao redor do globo. Os aspectos em evidência são muitos, mas é inevitável que uma grande atenção seja dada às favelas, sobretudo as do Rio de Janeiro, que aparecem instantaneamente ao buscar por “Brazil” sites de grandes jornais estrangeiros.
Se ao noticiar eventos marcantes, o tom de jornais como New York Times e The Guardian costuma ser de piedade, ao cobrir os eventos específicos das comunidades o discurso corre o risco de se tornar ainda mais condescendente. Para compreender como essa cobertura acontece, realizei o exercício de buscar a palavra “favela” nos dois jornais.
The Guardian e a arte nas favelas
O jornal britânico independente começa bem, anunciando o lançamento de um filme brasileiro produzido nas favelas de Brasília. O filme em questão é o “Mato seco em chamas” que conta a história de uma gangue feminina que rouba petróleo para revender.
O The Guardian destaca pontos importantes da obra como o elenco de não-atores que emprestam seus nomes reais para os personagens que representam e a proximidade da ficção com a realidade. Ao falar da realidade nas favelas, porém, o jornal tende a utilizar termos próximos demais da ficção, como quando descreve Sol Nascente como “uma favela infestada de crimes”.
Apesar do olhar sutilmente fantasioso sobre a vida nas comunidades, o texto recebe uma licença poética por se tratar de uma crítica de cinema e estar naturalmente próximo da inventividade. Infelizmente, a visão das favelas como ambientes propícios para a arte acaba aqui, dando lugar para a violência e a injustiça que são fortemente destacadas pelo The Guardian.
Sem apelo emocional
Não é segredo nem no Brasil nem fora daqui que as favelas protagonizam os maiores e mais cruéis episódios de violência policial do país. É contando sobre esse fato que o jornal publicou uma galeria intitulada “Operação policial mortal no Rio Janeiro – em fotos“.
É importante ressaltar que em nenhum momento o The Guardian emite opinião sobre as operações policiais e deixa os adjetivos e revolta para as fontes entrevistadas. É visível que o jornal noticia uma dor que não lhe é familiar, um sofrimento distante da realidade britânica. O problema disso é a dificuldade em responsabilizar qualquer um dos envolvidos, como no trecho em que o jornal diz que “uma bala perdida atingiu uma jovem grávida durante uma batida policial“, afinal, uma bala perdida não atribui culpa a ninguém.
A hipocrisia dos “narcopentecostais”
Um ponto interessante ressaltado pelo The Guardian é o fenômeno observável do crescimento da igreja evangélica dentro do tráfico de drogas. Esse texto, muito mais opinativo que o anterior, considera a popularização de “narcopentecostais” um fato nocivo e hipócrita.
A principal ferramenta textual que o jornal usa para marcar a hipocrisia é o contraste entre a fala da fonte e o contexto descrito imediatamente depois. Um exemplo disso é o trecho: “Pastor, você acha que poderíamos realizar um culto na minha casa na próxima quinta-feira?” O gângster de cabelos oxigenados se perguntou, segurando uma AK-47 no colo enquanto se sentava ao lado do homem de Deus”. A quebra de expectativa é justamente o que torna o texto tão impactante e efetivo em seu objetivo de provocar reflexão.
Tom Phillips, o jornalista que escreveu a matéria também destaca a crença dos jovens traficantes de que o seu sucesso em atividades ilegais advém de uma proteção divina. “Já evitei a morte tantas vezes. Foi Ele quem me livrou do mal”, refletiu um dos traficantes entrevistados por Phillips.
De acordo com o jornalista a aproximação do tráfico com as igrejas evangélicas teria tornado o ambiente das favelas razoavelmente mais seguro para alguns moradores, entretanto práticas de intolerância prejudicaram outros tantos. No texto é citado um traficante denominado “Peixão” que foi “acusado de liderar o Bonde de Jesus, uma gangue de extremistas armados de rifles que supostamente saquearam uma sucessão de templos afro-brasileiros”. De acordo com o texto, celebrações afro-brasileiras teriam sido proibidas no Complexo de Israel.
Antes de terminar a reportagem, o jornalista destaca que alguns moradores dizem que a doutrina instituída “melhorou a vida em um gueto há muito negligenciado pelo Estado”, apontando que a possível origem de todos os problemas da favela é a negligência governamental.
The New York Times e a arte das favelas
Semelhantemente ao The Guardian, o NY Times também notou a arte produzida dentro das comunidades, entretanto, fez uma curiosa escolha de palavras ao noticiar com certa alegria a popularidade de projetos de leitura dentro da favela. No texto “Autores negros agitam o cenário literário brasileiro”, a reportagem diz que um festival literário que surgiu em 2012 “mostrou que há leitores morando em favelas, o que até então era considerado impossível”.
De fato, as taxas de analfabetismo são realmente mais altas nas favelas, mas o tom da reportagem pode ser encarado como condescendente, parabenizando uma população por alcançar o mínimo que já lhes deveria ser garantido por direito.
Ao falar de música o discurso é diferente. Uma reportagem que relata o sucesso da cantora Anitta condena o preconceito e defende os “bailes funk”, uma vez que a polícia considera os eventos “terreno fértil para a violência das gangues” enquanto as altas classes sociais usufruem da produção musical de “artistas favelados”. É como se o jornal estivesse se esforçando para encontrar algo de bom nas favelas, mas “vez ou outra” esbarrasse em seu próprio preconceito e visão estereotipada da realidade.
Um cenário de guerra
Ao acompanhar o NY Times, o leitor irá se deparar com uma guerra com múltiplos lados combatendo entre si: o narcotráfico, que mantém os moradores presos na violência, a força policial, que mata pessoas pretas em nome da segurança pública, a Suprema Corte que tenta controlar a violência policial enquanto negligencia a população, e os próprios moradores da favela, que são mortos no meio da guerra.
O jornal afirma que os moradores não confiam nem na polícia nem no Estado, estando, portanto, sentenciados a viver sob o comando do narcotráfico. Outro grande problema apontado pelo NY Times é a polícia e a justiça lutarem em lados opostos já que segundo o jornal “a maioria dos assassinatos cometidos por policiais no Rio geralmente fica impune“.
The New York Times não se acanha em dar opinião sobre a situação complexa que o Brasil vive, e afirma que somos “um país assolado pela violência policial, racismo sistêmico e impunidade”.
É triste a percepção que um grande jornal estrangeiro possui do Brasil, e mais triste ainda é a solução simplista apresentada para resolver todos os nossos problemas. O jornal faz o favor de nos explicar: “A reforma sustentada não pode acontecer se os policiais continuarem a tratar os negros brasileiros como suspeitos e os bairros como território hostil. O ciclo de violência não terminará se os líderes continuarem a empregar torturadores enquanto comandantes e os assassinatos policiais ficarem impunes”. Agora, gratos pelo esclarecimento, podemos reorganizar toda a nossa força policial e justiça brasileira em perfeita harmonia.