A guerra pela “terra prometida”
- 15 de setembro de 2021
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Esther Fernandes
Após 20 anos de um ataque terrorista que parou o mundo, o Afeganistão volta a dominar os noticiários. Entenda os desdobramentos e a retomada do grupo extremista Talibã ao poder do país. O doutorando em Relações Internacionais na PUC Rio, Vinícius Armele, explica as principais questões relacionadas ao tema. Confira:
Por que o Afeganistão é um país tão disputado por grandes potências?
Essa não é uma resposta simples e direta, pois não existe um único motivo. É preciso compreender alguns eventos em particular da história do Afeganistão: a Guerra Afegã (1978–1992) que foi um conflito interno que começou em 1978 entre guerrilhas islâmicas anticomunistas e o governo comunista afegão (auxiliado em 1979-89 pelas tropas soviéticas), levando à derrubada do governo em 1992; e a Guerra no Afeganistão (2001-2014) e a subsequente ocupação militar norte-americana no país até 2021.
O que é o grupo Talibã e como surgiu?
O Talibã, Pashto Ṭālebān (“Estudantes”) é uma facção política e religiosa ultraconservadora que surgiu no Afeganistão em meados da década de 1990 após a retirada das tropas soviéticas, o colapso do regime comunista do Afeganistão e a subsequente quebra da ordem civil. A facção recebeu o nome de seus membros, que consistiam em grande parte de estudantes treinados em madrasahs (escolas religiosas islâmicas) que haviam sido estabelecidas para refugiados afegãos na década de 1980 no norte do Paquistão, a partir de grupos tribais e urbanos – conhecidos coletivamente como mujahideen (em árabe: mujāhidūn, “aqueles que se engajam na jihad”).
Os mujahideen eram fragmentados politicamente em um punhado de grupos independentes e seus esforços militares permaneceram descoordenados durante a guerra. A qualidade de suas armas e organização de combate melhorou gradualmente, no entanto, devido à experiência e à grande quantidade de armas e outros materiais de guerra enviados aos rebeldes, via Paquistão, pelos Estados Unidos e outros países e por muçulmanos de todo o mundo. Além disso, um número indeterminado de voluntários muçulmanos – popularmente chamados de “árabes-afegãos”, independentemente de sua etnia – viajaram de todas as partes do mundo para se juntar à oposição.
Um desses voluntários que ganharia nome e prestígio internacional, sendo inclusive celebrado pela imprensa norte-americana à época, seria justamente o jovem Osama Bin Laden. Pouco tempo depois que a União Soviética invadiu o Afeganistão em 1979, Bin Laden, que viu a invasão como um ato de agressão ao Islã, começou a viajar para se encontrar com os líderes da resistência afegã e levantar fundos para a resistência. Em 1984, suas atividades estavam concentradas principalmente no Afeganistão e no Paquistão, onde procurou recrutar e organizar voluntários árabes para lutar contra a ocupação soviética. Os recursos financeiros de Bin Laden, juntamente com sua reputação de piedade e bravura em combate, aumentaram sua estatura como líder militante. Um banco de dados de computador que ele criou em 1988 listando os nomes de voluntários para a Guerra Afegã levou à formação naquele ano de uma nova rede militante chamada Al-Qaeda (em árabe: “a Base”), embora o grupo permanecesse sem objetivos claros ou operacionais agenda por vários anos.
No final de 1996, o apoio popular ao Talibã entre o grupo étnico pashtun do sul do Afeganistão, bem como a assistência de conservadores islâmicos no exterior, permitiram que a facção tomasse a capital, Cabul, e ganhasse o controle efetivo do país. Depois que o Talibã capturou, a organização islâmica sunita estabeleceu regras rígidas. As mulheres tinham que usar coberturas da cabeça aos pés, não tinham permissão para estudar ou trabalhar e eram proibidas de viajar sozinhas. TV, música e feriados não islâmicos também foram proibidos.
Por que, após vinte anos de combate, os Estados Unidos decidiu retirar suas tropas do Afeganistão? E quais as consequências da saída dos EUA do Afeganistão?
O conflito internacional no Afeganistão começou em 2001 e oficialmente se encerra com o anúncio do presidente Joe Biden de que as tropas norte americanas se retirarão completamente do Afeganistão em 31 de agosto de 2021, tendo sido desencadeada pelos ataques de 11 de setembro de 2001 aos Estados Unidos. Estes ataques desencadearam uma série de eventos que veriam Washington – em apenas um mês – a começar a guerra mais longa da história do país. De acordo com uma pesquisa da Brown University, o conflito de 20 anos deixou cerca de 69.000 forças de segurança afegãs e pelo menos 51.000 civis afegãos morto. Cerca de 2.500 militares dos EUA e 1.144 membros de militares aliados da OTAN morreram durante os combates.
Em 11 de setembro de 2001, membros da Al-Qaeda, um grupo que recebeu refúgio no Afeganistão controlado pelo Talibã, sequestram quatro aviões comerciais nos Estados Unidos. Dois dos aviões são lançados contra os prédios do World Trade Center na cidade de Nova York, derrubando as duas torres. Um avião voa para o Pentágono, a sede do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, na Virgínia, e se choca contra a sua estrutura. O quarto avião cai em um campo na Pensilvânia, depois que os passageiros a bordo, ouvindo sobre os outros ataques, invadem a cabine. Um total de 2.977 pessoas foram mortas nos ataques.
Como consequência, o presidente George W. Bush promete “vencer a guerra contra o terrorismo” contra a Al-Qaeda e Osama bin Laden no Afeganistão. Bush conclama o regime do Talibã a “entregar às autoridades dos Estados Unidos todos os líderes da Al-Qaeda que se escondem em sua terra” ou que compartilhem de seu destino. Culminando na sanção por parte do presidente George W. Bush de uma resolução conjunta autorizando o uso da força contra os responsáveis pelo ataque aos Estados Unidos em 11 de setembro.
Menos de um mês depois dos ataques de 11 de setembro, o presidente George W Bush lança a “Operação Liberdade Duradoura” no Afeganistão, depois que o Talibã se recusa a entregar o líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden. Em questão de semanas, as forças lideradas pelos EUA derrubaram o Talibã, que estava no poder desde 1996.
Em 17 de abril de 2002 se inicia o processo de construção para um governo de transição do Afeganistão. Um governo de transição liderado por Hamid Karzai é estabelecido em Cabul e o Congresso dos EUA aprova US $ 38 bilhões em gastos como parte do plano de Bush para reconstruir o Afeganistão. No mesmo ano, o congresso norte americano aprova uma resolução que coloca os EUA no caminho para uma invasão do Iraque, argumentando que Bagdá estaria desenvolvendo “armas de destruição em massa” e seria aliada do Talibã, porém, nenhuma evidência foi encontrada para substanciar as afirmações do governo Bush.
À medida que as atenções se voltam para o Iraque, o Talibã e outros grupos armados se reagrupam em seus redutos no sul e no leste do Afeganistão, de onde podem facilmente viajar de e para as áreas tribais do Paquistão. Em 2008, o comando dos EUA exige mais soldados para uma nova ofensiva contra o Talibã. Tanto o governo Bush concorda em enviar soldados adicionais, em meados de 2008, subindo para 48.500 soldados norte-americanos no país, quanto Obama em 2009 aumentando para aproximadamente 100 mil soldados norte-americanos.
Em 2 de maio de 2011, o líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden, que os EUA identificaram como o mentor do ataque de 11 de setembro, é morto durante uma operação das forças especiais dos EUA no Paquistão, onde ele estava escondido. Em junho do mesmo ano, Obama anuncia que os EUA começarão a retirar tropas do Afeganistão, na medida que começam as primeiras tentativas de negociação entre os EUA, o Talibã e o governo afegão. Em dezembro, os EUA retiraram completamente as tropas do Iraque.
Porém, Obama além de não cumprir com a promessa de campanha da retirada das tropas do país, é marcado pelo ataque aéreo em 2015 que bombardeia um hospital administrado pelo Médicos sem Fronteiras (MSF) na província de Kunduz, matando 42 pessoas, incluindo 24 pacientes e 14 membros da ONG. Até o final do seu mandato, Obama diminui o ritmo de retirada das tropas dos EUA mantendo cerca de 8.400 soldados dos EUA no Afeganistão em 2017.
Em 21 de agosto de 2017, o recém-eleito presidente Donald Trump abre caminho para o envio de milhares de soldados americanos ao Afeganistão em seu primeiro discurso formal. Posteriormente, Trump envia cerca de 3.000 soldados a mais para o Afeganistão, elevando o total de tropas dos EUA no país para cerca de 14.000. Contudo, o Talibã emitiu uma carta aberta ao recém-eleito presidente dos EUA pedindo-lhe que retirasse as forças dos EUA do Afeganistão.
Em 29 de fevereiro de 2020, o Talibã e o governo Trump chegam a um acordo para a retirada das tropas americanas até 1º de maio de 2021 e a liberação de cerca de 5.000 prisioneiros do Talibã, em troca da interrupção dos ataques contra as forças americanas e do corte dos laços com a Al-Qaeda. Em seus últimos dias de mandato, o governo Trump anuncia que as forças dos EUA no Afeganistão foram reduzidas a 2.500.
Após as forças dos EUA deixarem o campo de aviação de Bagram, sua maior instalação militar no Afeganistão, Biden anuncia que as tropas dos EUA se retirarão completamente do Afeganistão em 31 de agosto. Contudo, se observou uma nova ofensiva com avanços e ganhos territoriais por parte do Talibã. Em 6 de agosto, o grupo toma sua primeira capital provincial, Zaranj, desde o início da ofensiva. Pelo menos mais 17 províncias foram tomadas pelo Talibã nos dias seguintes. Em 15 de agosto, o Talibã entra em Cabul sem resistência enquanto o presidente Ashraf Ghani foge do país.
Durante o processo de evacuação do país, o grupo Estado Islâmico na Província de Khorasan, ou ISKP (ISIS-K), ataca o aeroporto de Cabul, que está sob controle militar dos EUA, em um bombardeio que mata cerca de 200 afegãos e 13 militares dos EUA. O ataque é um dos mais mortíferos para as forças dos EUA desde que entraram no Afeganistão. Como retaliação, um ataque de drones por parte dos EUA mata vários civis, incluindo crianças, em Cabul.
Em 30 de Agosto de 2021, o Pentágono anuncia que todas as tropas americanas deixaram o Afeganistão – com o último avião decolando pouco antes da meia-noite, antes do prazo final de 31 de agosto. Pelo menos 100 cidadãos americanos permanecem no Afeganistão, assim como um número incontável de afegãos que trabalharam para o governo dos EUA.
Como o grupo radical Talibã dominou o país tão rapidamente após a saída dos EUA?
Nas últimas duas décadas, os EUA gastaram mais de dois trilhões de dólares no Afeganistão. Quando o presidente George W. Bush anunciou a primeira ação militar no Afeganistão após os ataques terroristas da Al Qaeda em 2001, ele disse que o objetivo era interromper as operações terroristas e atacar o Talibã. Porém, vinte anos depois, o Talibã se mostrou cada vez mais forte.
O Departamento de Defesa dos divulgou detalhamentos de alguns dos três anos mais recentes de gastos. A maior parte do dinheiro detalhado nessas avarias – cerca de 60% ao ano – foi para coisas como treinamento, combustível, veículos blindados e instalações. Os transportes, como elevadores aéreos e marítimos, consumiram cerca de 8%, ou US$ 3 bilhões a US$ 4 bilhões por ano.
Segundo o Inspetor Geral Especial para a Reconstrução do Afeganistão, os EUA gastaram cerca de US$ 10 bilhões em combate aos narcóticos e descreveu estes esforços como um “fracasso”. Apesar dos bilhões de dólares para combater o cultivo da papoula do ópio, o Afeganistão se mantém como a fonte de 80% da produção ilícita global de ópio, isto é, de heroína do mundo. De acordo com dados das Nações Unidas de 1996 a 2001, antes da guerra, o Afeganistão havia erradicado quase completamente o ópio enquanto o Talibã estava no poder. Hoje, o cultivo de ópio é uma importante fonte de renda e empregos, bem como receita para o Talibã. Além dos gastos de guerra, é a maior atividade econômica do Afeganistão.
Em relação aos gastos militares e com treinamento, foram cerca de US$ 87 bilhões para treinar as forças militares e policiais afegãs. A maior parte dos gastos americanos em reconstrução foi para um fundo que apoia o Exército e as forças policiais afegãs por meio de equipamento, treinamento e financiamento. Contudo, o Exército afegão, em particular, sofre com o aumento das taxas de baixas e deserções, o que significa que eles precisam treinar novos recrutas, totalizando pelo menos um terço de toda a sua força a cada ano.
Apenas US$ 24 bilhões foram alocados para desenvolvimento econômico. Os gastos relacionados à guerra praticamente dobraram o tamanho da economia do Afeganistão desde 2007, porém esse movimento não se traduziu em uma economia saudável. A maioria dos afegãos ainda vive na pobreza e um quarto ou mais dos afegãos estão desempregados.
Para além da questão do elemento econômico, é fundamental destacar como que o acordo de paz de 2020 entre o Talibã e o governo Trump não acarretou no fim das hostilidades. A violência no Afeganistão atingiu seus níveis mais altos em duas décadas. O Talibã aumentou seu controle sobre áreas mais amplas do país – e em junho deste ano, contestava ou controlava cerca de 50% a 70% do território afegão fora dos centros urbanos, de acordo com um relatório do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
O Talibã tentou se apresentar como diferente do passado – alegou estar comprometido com o processo de paz, com um governo inclusivo e disposto a manter alguns direitos para as mulheres, porém, parecia estar focado no fortalecimento de sua posição militar para conseguir vantagem nas negociações – ou, se necessário, no uso da força armada. Enquanto isso, as forças afegãs às vezes careciam de coordenação e sofriam com o moral baixo. Quanto mais derrotas eles sofriam, pior ficava seu moral e mais encorajados ficavam o Talibã
De que forma a Organização das Nações Unidas (ONU) tem se manifestado diante dos recentes acontecimentos?
A ONU condenou o Talibã por sua “resposta cada vez mais violenta” à dissidência e repressão às manifestações, semanas depois da rápida tomada do Afeganistão pelo grupo. O Programa Mundial de Alimentos da ONU disse que 93% das famílias no país não comiam alimentos suficientes. Uma seca agravou os problemas de abastecimento, causando a perda de cerca de 40% da safra de trigo. A Unesco, um dos órgãos da ONU, alerta que o país enfrenta uma “catástrofe geracional” na educação, após duas décadas de progresso para as crianças – principalmente as meninas. Já o Conselho de Segurança aprovou, com treze dos 15 embaixadores tendo os membros permanentes China e Rússia se abstendo, a favor da resolução da qual os países condenaram nos termos mais fortes as explosões mortais no aeroporto de Cabul, que mataram mais de 150 pessoas e feriram mais de 200.
Quais são as previsões para o futuro do Afeganistão?
É sempre muito difícil fazer previsões. Esse não deve nem ser o objetivo de análises políticas sobre conjunturas. Mas eu vou me limitar a dois pontos que merecem a nossa atenção. Em primeiro lugar, a sustentação de um novo governo Talibã dependerá muito de apoios externos. O reconhecimento internacional é uma questão fundamental para as relações internacionais. A China vem se aproximando devido a interesses econômicos, e recentemente reconheceu o Talibã como importante força política no Afeganistão. A China se posicionou como um ator de liderança no futuro econômico do Afeganistão. O presidente Xi prometendo trabalhar com a Rússia para garantir uma transição suave de poder. A Rússia está interessada na estabilidade do país por questões de segurança.
O segundo ponto é relativo à proteção de direitos humanos. No passado, as violações contra mulheres e minorias afegãs foram extensivamente cruéis. É muito difícil acreditar no discurso de que o Talibã de agora está mais moderado ou se o pragmatismo econômico poderia domá-lo. Em outros países do mundo já observamos como essa ideia de que um certo pragmatismo econômico não tem sido o suficiente para conter lideranças e grupos ultra conservadores e reacionários.