Por você eu me arrisco
- 24 de novembro de 2020
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Algumas responsabilidade transferidas para as máquinas, na era digital, pode parecer não ser uma má ideia
Amanda Januário
“Bem me quer, mal me quer, bem me quer, mal me quer…” Talvez você já tenha despedaçado uma flor quando pequeno seguindo esse ritual. A brincadeira infantil revela o medo presente na vida da maior parte dos seres humanos, o medo da rejeição. O olhar tímido ou exibicionismo em excesso implora atenção, pois afinal de contas, quem não deseja ser amado? E quando se trata de relacionamento a dois, o medo pode ser ainda mais brutal. Um simples “oi” cria borboletas no estômago, faz o tropeçar das sílabas e perder a coordenação motora. Deve ser por isso que os aplicativos de relacionamentos se deram tão bem. O velho cupido nunca morreu, ao contrário, parece estar melhorando a cada dia. Ele diminui as barreiras e dá pílulas rápidas para as inseguranças.
O episódio “Hang the DJ” da quarta temporada da série Black Mirror, criada por Charlie Brooker, Jesse Armstrong, William Bridges, narra em 52 minutos uma utopia vibrante. O casal Amy e Frank participam de um aplicativo de relacionamento que tem por base os dados pessoais e a gestão de uma IA (Inteligência Artificial). Com essa super tecnologia a disposição, os participantes não precisam se preocupar em tomar decisões difíceis como, quem e por quanto tempo o casal permanece junto, já que o aplicativo determina .Surpreendentemente, os protagonistas, mesmo dentro da simulação, criticam o sistema e se negam deixar ser controlados por ele.
O que lembra a antiga tragédia Romeu e Julieta, escrita por William Shakespeare. O que inicialmente era uma química entre os casais, ganha força e eles já não conseguem se ver separados. A vida se torna amarga e sem graça por não poderem permanecer juntos. Entretanto, a sorte não parece cooperar para que o amor prevaleça. Em ambas as histórias parece haver uma conspiração empenhada em prejudicar a união. Ao analisar histórias como estas, e ao observar insucessos na vida, cria-se uma boa justificativa ao anseio de não arriscar se envolver em relacionamento que bem provavelmente será penoso ou radical.
Se de fato um aplicativo pode analisar quem sou pela forma que me comporto e interajo com as pessoas, seja pessoalmente ou por rede social, então ficará mais fácil para ele encontrar o par ideal. “As máquinas não falham”, alguém pode defender, entretanto não são os erros uma oportunidade ou quem sabe uma vantagem a mais que o ser humano tem? De fato, não é inteligente descartar o desgaste que uma falha traz ao indivíduo. É cansativo, por vezes humilhante e até mesmo doloroso.
O aplicativo de relacionamentos do episódio mostrou que entendeu bem isso. Pois deu a oportunidade do casal Amy e Frank simularem inúmeros parceiros para que finalmente entendessem qual era o ideal. Por ser um teste e não a realidade, eles sofreram sem sofrer. Os seus dados forneceram os escudo de proteção contra qualquer decepção amorosa na vida real.
O diferencial entre Romeu e Julieta, Amy e Frank, é que o primeiro casal não se uniu por um aplicativo. Você lembra do frio na barriga, um olhar trocado, um andar desajeitado? Nada disso foi previamente acertado. Eles não sabiam que tinham sido “feitos um para o outro”. Foi natural. Contudo, não podemos condenar Amy e Frank por aceitar novos jeitos de conhecer e escolher um parceiro. Cada história é um universo único.
A pergunta que ressoa ao final de “Hang the DJ” inquire o direito de todo o ser humano, a liberdade de escolha. Até onde um aplicativo me permite escolher? Será mesmo que preciso ter dezenas de relacionamentos para saber qual o parceiro ideal? Quem eu demonstro ser nas minhas redes sociais realmente representa o que eu sou? E mais importante de tudo, porque transferir a uma máquina a responsabilidade de escolher por mim? Nem sempre o caminho mais fácil e confortável é o melhor. A disposição em correr risco também gera vantagens, concordaria Amy e Frank, e porque não Romeu e Julieta?