“O mundo não será o mesmo”
- 14 de abril de 2020
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- Thamires Mattos
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O entrevistado desta edição é o professor de História e Filosofia Nei Nordin. Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Nordin conversou com a repórter Esther Fernandes sobre a questão das pandemias ao longo da história e seus impactos na sociedade.
Esther Fernandes: Ao longo do tempo, várias doenças marcaram a história dentro do contexto das ciências biomédicas. Você acha que as epidemias e pandemias também causaram impacto nas ciências humanas e sociais?
Nei Nordin: Certamente. Todo evento de impacto e ruptura na história humana reflete transformações no pensamento, na forma de compreender a dinâmica social e até na visão que o humano possui de si próprio. Costuma-se buscar respostas na História e na Filosofia, e, como estas se fazem de interpretação e questionamentos, acabam igualmente impactadas em suas tendências.
EF: Uma doença pode ser examinada fora da estrutura social na qual está inserida?
NN: Toda doença está diretamente implicada na sociedade em que ocorre. Afinal, hábitos e costumes (que são do domínio cultural) também terminam por influenciar implicações de uma doença, como, por exemplo, sua capacidade de propagação. O exemplo mais evidente são os hábitos de higiene, que estão diretamente relacionados com a história sanitária da humanidade.
EF: As exigências do sistema econômico da época influenciam de que forma a resposta da população diante de uma epidemia?
NN: Em primeiro lugar, elencamos as condições materiais que uma população tem de se proteger do contágio. Vemos o exemplo atual em que o isolamento é medida sanitária, mas que nem todos tem condições concretas de fazê-lo. Lembremos o exemplo ilustre da literatura em que a peste negra em Florença é o pano de fundo do Decameron, de Giovanni Boccaccio onde dez jovens se refugiam num castelo no interior buscando o isolamento. Outra questão econômica a ser levada em conta é que as populações mais pobres são, via de regra, menos atendidas em estrutura sanitária – como esgoto e água tratada. O Brasil peca muito neste sentido, pois quase metade da sua população não possui coleta de esgoto. Mesmo em cidades que realizam a coleta, muitas não propiciam tratamento adequado. Um terceiro fator está na densidade populacional de uma região. Historicamente, lugares com maior desenvolvimento comercial concentram mais “contato humano” e maior perigo de contágio. Tais aspectos estão diretamente associados à distribuição de renda e estrutura econômica.
EF: Como que você acha que essas exigências econômicas estão sendo aplicadas no caso da Covid-19?
NN: Já estamos recebendo notícias de que a pandemia não funciona do mesmo jeito em todas as nações. Em alguns casos, não entendemos bem os motivos. Olhamos estarrecidos para o caso da Itália e buscamos os exemplos de onde ela foi menos fatal. Neste caso, medidas de contenção tomadas a tempo foram importantes, mas as características econômicas de cada região certamente interferem na disseminação. O Brasil, como um país de uma imensa pluralidade social e cultural, também deverá ser afetado de formas diferentes.
EF: O auge de uma epidemia/pandemia é o momento ideal de se discutir políticas públicas de saúde?
NN: Todos os especialistas em políticas de saúde concordam que a prevenção é mais eficaz do que o tratamento. Parece ser da natureza humana projetar soluções apenas para os problemas que já ocorreram e não dos que podem ocorrer. A dimensão do novo coronavírus pegou o mundo de surpresa, mas não foi sem avisos prévios. Todos sabiam das possibilidades de mutação dos vírus. De qualquer forma, após esta crise, certamente será o momento para que os países repensem suas políticas públicas de saúde. Os mais afetados certamente levarão esta questão a sério.
EF: Há elemento(s) em comum entre diferentes nações de diversas épocas que foram vítimas de epidemias ou pandemias?
NN: Pensando no contexto geral, é possível focar mais nas diferenças do que nas semelhanças. A tecnologia torna nossa época histórica diferente de qualquer outra que a humanidade tenha vivido. Contudo, podemos identificar reações semelhantes entre regiões e épocas. Manifestações de xenofobia, por exemplo, tem aparecido nas redes sociais contra a China, por ser ali a origem da pandemia. Durante a peste negra do século XIV, os bairros judeus de muitas cidades foram atacados, sob acusação serem os judeus os causadores da doença. Em 2009, durante o surto do vírus H1N1, políticos do EUA propuseram o fechamento das fronteiras com o México, sob argumento de serem os mexicanos propagadores do vírus.
Os sentimentos de religiosidade também afloram em épocas de perigo iminente. Não estamos numa Idade Média de superstições exacerbadas, mas isto não significa que muitas pessoas não estão dispostas a crer em teorias escatológicas como o fim dos tempos ou uma nova era da humanidade. As redes sociais estão cheias de tais manifestações.
EF: Além das tecnologias médicas, quais outras áreas sofrem alterações após uma epidemia?
NN: Praticamente todas. A imprensa já noticia que aspectos da economia e socedade deverão ser afetados. Já mencionamos sobre a área do pensamento e das ciências sociais. Certamente, o peso político das nações deverá se alterar após a crise, mas ainda precisamos esperar um pouco para fazer melhor esta avaliação.
É de se esperar que hábitos sociais também se modifiquem. A mortandade da gripe espanhola da 1918 deixou marcas em gerações posteriores. As pessoas, principalmente dos países mais afetados, certamente deverão adaptar seus padrões de sociabilidade nos contatos, como as saudações de cumprimento, o beijo; os eventos; entre outros. É possível conjecturar que adotaremos um distanciamento preventivo por algum tempo.
EF: Qual sua perspectiva de como o mundo vai reagir à pandemia de Covid-19?
NN: O mundo não será o mesmo. Políticas serão repensadas e o tabuleiro das nações será transformado. Já estão surgindo análises das transformações vindouras após a crise do Covid-19. Penso que a mais perturbadora seja o reforço dos padrões de controle social e perda da individualidade, fenômeno que já está em curso desde o advento da internet, redes sociais, e mesmo antes.
Hoje, os algoritmos do Google sabem muito dos hábitos individuais dos usuários. As pessoas estarão dispostas a abdicar ainda mais desta individualidade em troca de segurança e saúde. Já existem tecnologias que podem controlar em tempo real, temperatura e batimentos cardíacos de uma pessoa. Após a crise da pandemia, será mais fácil convencer uma nação inteira a aceitar este tipo de expediente. Isto abre caminho para outros tipos de controle, bem como novas possibilidades de mercado e consumo. Existe boa margem de certeza para acreditar que será um mundo diferente após a Covid-19,