Falsa realidade
- 11 de março de 2020
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- Thamires Mattos
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Em 1973, a emissora americana PBS lançou o primeiro reality show da TV. O programa mostrava a rotina de uma família estadunidense, tendo como fim a representação da vida real na TV. Com o tempo, o gênero televisivo passou a fazer enorme sucesso ao redor do mundo. Atualmente, o reality show de mais repercussão é o Big Brother – exibido em mais de 60 países. Diante da grande fama, levanta-se uma incógnita: qual é o impacto social a respeito da popularidade desse programa? A repórter Isabella Anunciação conversou com a Psicoterapeuta Marília Pereira Bueno Millan a fim de discorrer sobre os impactos sociais desse gênero televisivo. Ela é doutora em Psicologia Social e líder do Grupo de Pesquisa “Relacionamentos Interpessoais e Familiares na Contemporaneidade”.
Isabella Anunciação: Quais são as principais características para um programa ser considerado reality show? E quais são os elementos necessários para que se tenha sucesso?
Marília Millan: Ele é um programa de entretenimento que usa como veículo a televisão, e que, atualmente, pode-se utilizar da internet em outros aparelhos também. Normalmente, mostra uma pretensa experiência real. Os personagens são pessoas comuns que se dispõem a participar desses programas em troca de fama, reconhecimento ou sucesso financeiro. Também temos os elementos atrativos. No caso do Big Brother Brasil (BBB), existem os conflitos, os namoros, as intrigas. Tudo isso mobiliza a curiosidade das pessoas.
IA: A SEMrush, líder global em marketing digital, realizou uma pesquisa para descobrir quais são os reality shows mais populares na internet entre os brasileiros. Big Brother Brasil recebeu 23 milhões de votos, enquanto Power Couple está em segundo lugar, com 3 milhões. Quais são os fatores que influenciam para que o BBB esteja disparado ao topo?
MM: O BBB tem uma certa tradição, então, ele se mantém. Um outro aspecto que conta muito é a participação do público. O público entra, palpita, vota. Isso confere ao espectador a sensação de que ele está dentro do programa, e que tem controle sobre aquelas pessoas também. O espectador vive a trama, opina, a decide. Essas características, do ponto de vista psicológico, são muito importantes, porque a pessoa se sente onipotente, porque ela tem o poder de decidir; onisciente, porque ela conhece de tudo que se passa naquela casa; e onipresente, porque ela está a todo momento presente na trama. Essas características são da divindade e muito nos agradam – ter características que nos conferem poder e a possibilidade de conseguir controlar o que a gente não consegue controlar na nossa vida. Então, o programa se presta a isso, você coparticipa. Mas, ao mesmo tempo, não é a sua vida, é a vida de um outro que você pode mexer e trabalhar sem um envolvimento direto.
IA: Reality Shows são programas televisivos que retratam a contemporaneidade? Quais os impactos sociais quanto ao seu consumo no presente e para o futuro?
MM: Sim, é um retrato da contemporaneidade. O mundo do século XXI, pelo menos aqui na cultura ocidental, é pautado na tecnologia, cujo principal elemento é a velocidade, a fugacidade e volatilidade tanto das informações quanto das experiências humanas de relacionamento. Tudo acontece muito rápido. A gente recebe muitas informações e acabamos “metabolizando” muito pouco disso. Ficamos à mercê da quantidade, e, por isso, apreendemos pouco da qualidade daquilo que a gente recebe. Com base nisso, o reality show é um retrato dessa contemporaneidade, porque é de uma volatilidade enorme. No caso do BBB, mobiliza muita curiosidade, essa coisa da fofoca, de saber do outro. Então, as pessoas se encantam com esse programa. Inclusive, ele não exige que se pense a respeito. Em termos de impactos sociais, eu acredito que seja muito difícil [medi-los] quando a gente estuda aspectos do mundo contemporâneo.
IA: O livro “A sociedade do espetáculo”, de Guy Debord, denuncia o estabelecimento de um sistema de controle social por meio de uma “falsa realidade”. Para ele, a realidade é transmitida através de imagens que vemos, mas também no ambiente construído em que vivemos. Posto isto, é possível não fazer parte desse sistema controlador? Por quê?
MM: A imagem por si só é um dos ícones da contemporaneidade. Assim como a velocidade, a imagem é o suprassumo para nós. A gente se contenta em ver imagens, e elas são altamente imobilizadoras para nós. É possível observar esse fenômeno nas pessoas que viajam e estão mais preocupadas em ter as imagens e publicá-las do que ter a experiência emocional com o lugar visitado. Portanto, a imagem é muito forte. Nós vivemos em um sistema – os reality shows fazem parte dele – em que há uma realidade criada. Quando colocamos pessoas dentro de uma casa, você tem um artifício. Elas ficam confinadas e tem que se relacionar ali. É uma falsa realidade também porque é um programa televisivo, que é manipulado. Esse programa têm os personagens certos, os candidatos certos, uma variedade enorme de tipos [de pessoas], então, somos mobilizados/as também por isso. E, quando é necessário, obviamente, existe a direção do programa que orienta também como as próximas ações vão acontecer.
É possível fugir do controle? Nós vivemos no mundo do controle, somos cercados de câmeras, a gente é achado em qualquer lugar. Essa tecnologia que atravessa a nossa realidade propõe controle. O controle efetivamente existe e está presente em toda nossa vida. O que a gente pode é ter uma visão crítica desse sistema controlador e conseguir encontrar os atalhos que podem oferecer resistência a esse sistema. Então, para isso, precisamos estar alertas do ponto de vista do pensamento, da reflexão. Se eu estou mergulhada em um reality show, obviamente estou sendo controlada por tudo isso e nem estou me dando conta. Diante das coisas do mundo, eu posso ter uma postura crítica, de pensador. E isso eu acho muito valioso.
IA: Na atualidade, muito é discutido sobre a dissolução das barreiras entre o público e o privado. O filósofo Zygmunt Bauman, considerado relativamente “popular”, criou o termo “modernidade líquida” para denominar uma série de comportamentos e medidas dos últimos anos, e, nelas, está a ausência de diferenciação entre as esferas da vida. Temos, de todos os modos, uma crise da sociabilidade. Os reality shows são uma reflexão disso? Se sim, como?
MM: O público e o privado ficaram misturados. Se a gente estava em casa, quando não existia todo esse desenvolvimento tecnológico, você estava no privado. Quando saía para a rua, aí sim estaria em público. Hoje, quando as pessoas saem nas ruas, elas não mais observam o mundo, as coisas que se passam ao redor. A maioria, principalmente em grandes centros, sai com seus celulares na mão. A crise de sociabilidade existe. Por natureza, o ser humano precisa se relacionar, mas ele foi se acostumando com contatos rápidos, muito fugazes. Como eu mantenho minha privacidade? Como que eu consigo me desligar das redes sociais? Como eu consigo reservar um tempo pra mim? Isso tem sido difícil para muitas pessoas, porém já existem estudos a respeito disso – como as pessoas ficam dependentes do celular, do computador, das redes sociais. Parece que nossa vida fica muito pautada e em função do que aparece. Isso está muito ligado com as imagens. Nós ficamos muito encantados com elas, com as novidades, com as mensagens que chegam para gente, e essa mensagem me desperta um sentimento de pertencimento. Resumindo: recebemos muitos estímulos, e essa quantidade não consegue ser absorvida por nosso “aparelho psíquico”. O que a gente faz? Acabamos por vivenciar coisas de uma forma muito superficial – de uma forma muito líquida, como o Bauman disse. A gente simplesmente recebe a informação, e, logo, já a esquecemos. Não há tempo para refletir a respeito.
É tudo muito rápido e superficial, e isso impede que existam encontros verdadeiros entre as pessoas. Os reality shows refletem isso? Sim, porque os julgamentos que são feitos do BBB, por exemplo, são muito rápidos. As pessoas não se debruçam sobre aquele drama, aquela situação ou problemática. Existe já um julgamento numa linhagem maniqueísta – isso está certo, isso está errado, isso é o bom, isso é ruim. E fica um pensamento de dualidade que não leva em conta a complexidade das relações humanas, a complexidade daquilo que a gente pode viver com os outros.
IA: O telespectador pode desenvolver a reflexão crítica e se tornar consciente diante desses programas?
MM: Poder, pode; mas, isso vai depender também de uma busca. Você [Isabella] está escrevendo sobre os reality shows, eu escrevi um artigo, e o que nós estamos fazendo? Nós estamos oferecendo para as pessoas um tipo de reflexão crítica. Não estou dizendo que seja a melhor ou a única possível. É uma reflexão a respeito de um tema, e essa reflexão é importante por levantar questões/ indagações. Então, a consciência crítica é algo que a gente faz ou desenvolve a partir da observação, a partir da percepção, a partir da associação dos recursos do pensamento. E isso pode acontecer ou não. Eu imagino que esse tipo de programa não tem a intenção de mobilizar reflexão crítica no telespectador. Como eu disse antes, nós, na nossa condição humana, somos sujeitos a sedução, a manipulação, a permanecer na zona de conforto. Quando você reflete criticamente sobre alguma coisa, quando você toma consciência, dá trabalho psíquico, mental e emocional. Diante desse sistema, é importante que as pessoas sejam questionadoras.
IA: Do ponto de vista psicológico e social, quais os pontos positivos e negativos do consumo de Reality Shows?
MM: O que é positivo? Eu acho que toda produção televisiva, uma produção que se dispõe a lidar com o humano, a mostrar o humano, poder ser considerada como algo positivo, porque, afinal de contas, a vida mimetiza as artes, e a artes mimetizam a vida. A gente sabe que, por ser um reality show, há arte envolvida. Há pessoas que trabalham criando isso. Enfim, é o valor do trabalho de cada um e por si só é preciso considerar isso. É uma produção que reflete a contemporaneidade, e, como vantagem, a gente tem a oportunidade de pensar sobre ela. Tudo o que nos mobiliza possui um valor intrínseco, ainda que não seja por si só algo tão valorizado. As pessoas podem encontrar no reality show essa oportunidade de projetar a sua própria vivência.