Uma pitada de polêmica no amor
- 24 de novembro de 2020
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O paralelo entre o que somos, a arte e as formas de amar para uns e outros
Ana Clara Silveira
Há quem diga que o amor é cego, mas, convenhamos, não deveria ser o sentimento que faz-se abrir os olhos? A complexidade das relações em “tempos líquidos” – termo utilizado pelo sociólogo Bauman que entende a velocidade das mudanças –, parece um exercício complexo que a ficção busca entender, interpretar e fragmentar.
Nesse ponto, é bem verdade que as produções cinematográficas cumprem seu papel de trazer à tona os preceitos e ideologias de “N” gerações; e, por vezes, é até capaz de prever ou apostar em comportamentos que ainda se tornarão comuns socialmente. Mas quando as relações são, sobretudo, amorosas, se espera certa reinvenção de como contar histórias – ou não. Um fato há de se considerar: o clichê ganha espaço e vasto repertório de produções sobre o tal do amor. E se há cegueira nesse termo, talvez seja por crer que todas as relações serão semelhantes ao que o cinema entrega.
O amor nos anos 70
Em 1970, “Love Story” – Uma história de amor” faz jus ao romantismo. O filme açucarado é a porta de entrada para narrativas semelhantes terem longo alcance, mas por outro lado, desperta certa antipatia entre os não melosos. Para quem busca o amor com pitadas de sacrifício, paixão e entrega sem precedentes, encontra o modelo perfeito de um casal que enfrenta as adversidades de “mãos dadas”. Para intensificar o potencial de um enredo como esse, músicas, faculdade e a falta de apoio da família não são dispensados.
Na história, o jovem rico Oliver, se apaixona por uma garota de família humilde, Jenny, estereotipada como insuficiente e rebelde, segundo o pai do rapaz. O grande vilão para ambos é a vida adulta e suas dificuldades, como também os relacionamentos frágeis em detrimento das relações de poder. Ao final, a descoberta da doença de Jenny e em seguida a sua morte, deixa Oliver inconsolável, mas para o filme, coroa suas estratégias de contentamento do público. Pode-se considerar que o filme, polêmico em sua época, alcançou sucesso.
E, de certa forma, o amor representado nas telas não é uma novidade, no entanto, se as percepções do que seria amar mudam, também há dinamismo nas relações e, por consequência, na arte. Alguns anos após o sucesso de “Love Story”, surgem outros pontos de vista. Mais que a rebeldia contra a família trazida pelas relações amorosas do século passado, alguns anos depois, há falta de pudor nas narrativas que dizem relatar novas formas de amar.
Tortura e amor combinam?
O filme “365 DNI” da Netflix, parece a visão absolutamente contrária das cenas de amor tão valorizadas em “Love Story”. No novo caso, uma mulher é sequestrada. Sua personalidade, a princípio retratada sem medo, parece aos poucos se desconstruir em uma figura nada revoltada com o seu próprio sequestro. O desafio imposto à jovem, chamada Laura, é se apaixonar pelo seu sequestrador, Massimo, no período de 365 dias.
O longa polonês encontrou críticas de alguns telespectadores que afirmam ter acontecido um relativismo da Síndrome de Estocolmo – quando a vítima se apaixona pelo agressor –, além de suavizar a ideia do crime cometido. Por outro lado, há quem defenda o enredo adotado. De uma forma ou de outra, as novas ideias de possibilidade para histórias de amor parecem ter um capítulo sombrio.
Para além de ir contra empecilhos financeiros, ou opiniões familiares negativas, há uma nova era de filmes – não todos – que defendem a quebra de aspectos morais para amar. Ou seria dado outro nome a tentativa de Massino de contrato com a vítima? Espero que sim: tortura e crime, por exemplo.
Fato é que, a volatilidade das relações não anula as responsabilidades dos conteúdos criados e das suas repercussões. A ideia de polêmico de ontem pode não ser como hoje, e se a ficção é uma mera representação ou recorte do real, faz sentido que haja questionamento quando ao que consumimos. De tempos em tempos, o amor se reinventa, e as criações artísticas também. Do clichê romântico de encher os olhos ao relacionamento possessivo polonês – que há quem considere uma história de amor –, a arte imita o que temos sido. E se há tanto conteúdo inútil, somos nós os culpados?