Um país de coitados
- 16 de março de 2022
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Como um dos maiores jornais dos Estados Unidos consegue transformar qualquer notícia brasileira em motivo de pena.
Mariana Santos
Se todo o seu conhecimento sobre o Brasil fosse baseado naquilo que o jornal The New York Times publica, você teria pena de nós. Não importa se o texto é sobre algo bom ou ruim: as entrelinhas deixam bem claro o posicionamento do jornal.
A cobertura estrangeira dos eventos que acontecem aqui no país, com frequência, se torna motivo de discussão nas redes sociais. De um lado da guerra, brasileiros defendem seu país e enfrentam opiniões dos grandes veículos estrangeiros. Do outro lado, brasileiros juntam-se aos discursos pejorativos e apoiam indivíduos que, muitas vezes, sequer pisaram em nossa terra, muito menos “calçaram os nossos sapatos”.
O que merece a atenção internacional? Quais acontecimentos se tornam pautas tão importantes que merecem um “lugar ao Sol”? O que o The New York Times (também conhecido como NY Times) escolhe falar sobre o Brasil e o que eles chamam de “mais relevantes”?
Analisando o posicionamento do NY Times
Em dois momentos diferentes, no dia 22 de fevereiro e posteriormente no dia 03 de março, foram analisadas as 10 primeiras notícias que citavam a palavra “Brazil”, organizadas pelo próprio site do jornal por ordem de relevância. Os resultados desta análise possibilitaram uma compreensão maior da percepção que o veículo midiático possui dos acontecimentos do nosso país.
Jack Nicas é o atual responsável pela cobertura do NY Times no Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai. Formado pela Universidade de Boston, o jornalista é versado em diversos temas e trabalhou para muitos veículos de comunicação. Atualmente, mora no Rio de Janeiro de onde coordena o trabalho de outros jornalistas e também escreve as próprias reportagens.
Com exceção dos jornalistas que apenas citaram o Brasil sem se aprofundar em assuntos referentes ao país, quase todos os profissionais envolvidos na cobertura do Brasil moram ou moravam aqui por ocasião das reportagens. É importante ressaltar que apenas 2 dos 11 jornalistas possuíam ascendência latina, sendo Vanessa Bárbara a única brasileira a integrar a equipe.
Por mais que a qualidade do trabalho impressione, a baixa representatividade de brasileiros gerou um problema gigante: uma visão externa e pouco contextualizada. Em nenhum momento o jornal publicou mentiras ou falas equivocadas, contudo, a verdade é que um ponto de vista estrangeiro não compreende todo o contexto sociocultural.
Os assuntos preferidos pelas reportagens foram política, meio ambiente e cultura. Mais da metade dos textos possuíam uma conotação negativa – cerca de 65%.Mesmo textos com uma temática “feliz” tinham como “pano de fundo” um contexto sofrido, marcado pelo preconceito racial e pela pobreza.
Desconsiderando a realidade
A matéria “No Brasil, um museu dentro de um museu restaura um legado“, escrita por DeJill Langlois, esteve em primeiro lugar no ranking de “mais relevantes” e sustentou o segundo lugar na semana subsequente, superando inclusive a cobertura do desastre em Petrópolis e o Carnaval no Rio de Janeiro.
A reportagem em questão fala sobre a realização do sonho do artista Abdias do Nascimento de construir um museu de arte negra. Por ocasião da morte de Abdias, sua esposa Elisa Nascimento deu seguimento ao projeto que hoje tem a sua “casa temporária” no Instituto Inhotim, em Belo Horizonte.
Por mais que o Brasil seja o cenário de todo esse projeto, o contexto retratado na reportagem é de uma negritude elitizada e pouco familiar aos brasileiros reais. Sim, existem brasileiros negros e ricos que apreciariam essa arte com muita satisfação, porém é importante lembrar que dentre os mais pobres, os negros são 75%, enquanto, entre os mais ricos, apenas 17%.
Pense bem: a pessoa que precisa trabalhar 10 horas por dia e sete dias por semana, dificilmente encontraria tempo para visitar esse formato de museu, contudo a pessoa pobre sequer é considerada na reportagem. É sempre bom ressaltar outras realidades da população negra, sem se ater apenas às mazelas da vida, contudo, é errado desconsiderar as dificuldades da maioria.
Destacando o sofrimento
Se em uma reportagem a pobreza é esquecida, em outra ela é o foco. No texto “Autores negros agitam o cenário literário brasileiro“, o jornalista Ernesto Londoño enfatizou a narrativa do livro escrito por Itamar Vieira Júnior: “a história difícil de duas irmãs em um distrito rural do nordeste brasileiro onde o legado da escravidão permanece palpável”.
Nascido na Colômbia e criado nos Estados Unidos, Ernesto faz parte da equipe de jornalistas latinos que escreveram para o NY Times sobre o Brasil. Contudo, nem mesmo a pequena familiaridade com o contexto impediu que o tom da reportagem se tornasse exagerado.
O entrevistado Julio Ludemir, criador de um projeto de incentivo a leitura nas favelas, chega a dizer que o projeto “mostrou que há leitores morando em favelas, o que até então era considerado impossível”, reforçando o estereótipo de pobre e analfabeto que os moradores da comunidades se esforçam para apagar.
Em outras reportagens, a ideia de negros pobres e analfabetos se mantém e se une ao estereótipo de país do carnaval. Tanto na reportagem que trata do carnaval clandestino quanto na “homenagem” à Elza Soares, o enredo gira em torno de brasileiros pobres, racismo e samba.
É triste destacar que, mesmo antes de começar o texto sobre Elza, logo no lead, o autor fala que “sua carreira foi mais tarde ofuscada por um caso com um famoso jogador de futebol que se tornou um escândalo nacional”, diminuindo o impacto da produção artística da cantora. No Brasil, a carreira e contribuição à música de Elza superou em muito o “escândalo nacional”. Disto são prova as inúmeras homenagens prestadas a ela em veículos nacionais, em que tal assunto é tratado com respeito e até com a intenção de reparar o dano sofrido e conscientizar vítimas de violência doméstica.
Zombando do (des)governo
Como se não bastasse o povo pobre e analfabeto, aparentemente o presidente deste país sem lei é uma piada sem graça. Não sem motivos, o jornal utilizou cada oportunidade disponível para criticar o governo Bolsonaro. Inclusive, a crítica mais dura ao presidente veio da brasileira Vanessa Bárbara no texto “Os últimos esforços de sabotagem do presidente brasileiro falharam”.
A coluna coloca Jair Bolsonaro em uma posição de vilão usando expressões como “seus planos malignos naufragaram” e “cada uma das birras do presidente é um sinal desse fracasso – e, para nós, motivo de comemoração”. Esse posicionamento da jornalista dá legitimidade aos textos escritos por jornalistas estrangeiros que compartilham do mesmo posicionamento político e fortalece a ideia de um país abandonado por Deus.
Por mais que os brasileiros, de forma geral, queiram manter uma boa imagem no exterior, a disposição do presidente em oferecer material para críticas se mostra contraproducente. A cada comentário ofensivo, a cada posicionamento imaturo e a cada declaração equivocada, o presidente brasileiro cava um buraco profundo para si e ainda arrasta o país consigo na queda.
Quando a internet entrou em pânico com a declaração do youtuber e podcaster brasileiro Monark à favor da criação de um partido nazista, o ator e podcaster Joe Rogan foi apontado como inspiração para formato de podcast e conduda do brasileiro. Rogan foi acusado de racismo em um contexto semelhante ao de Monark: durante a exibição de seu podcast. Segundo o New York Times, “no Brasil, Rogan foi aplaudido pelo presidente Jair Bolsonaro, que tem seu próprio passado de desinformação pandêmica e comentários racistas”, estabelecendo uma ligação entre o presidente e comportamentos considerados criminosos no Brasil.
A salvação para um país de coitados
De maneira proporcional à incapacidade do Brasil de se governar, os EUA são apresentados como a resolução para problemas sérios, como relações diplomáticas internacionais.
No texto “Um mundo longe da Ucrânia, a Rússia está cortejando a América Latina“, os jornalistas Jack Nicas e Anton Troianovski afirmam que, por ocasião da posse de Biden, “Bolsonaro começou a pedir às autoridades americanas um convite para Washington ou pelo menos um telefonema do novo presidente”, contudo não foi atendido e buscou “uma cúpula com outra potência mundial”. Ainda de acordo com a reportagem, os EUA teriam recomendado que Bolsonaro adiasse a sua ida à Rússia, porém, após ter a sua sugestão completamente desconsiderada, o país criticou fortemente a conduta do presidente.
Caso o Brasil tivesse cada uma das características citadas pelo NY Times e nada mais, seria de dar pena. Francamente, o Brasil retratado neste jornal deve ser um lugar péssimo, no qual ninguém gostaria de morar. Ainda bem que o nosso país é muito mais do que as dificuldades que passamos, é muito maior que o governo que nos castiga com sua má gestão e muito mais feliz do que o NY Times pensa. O Brasil não é um país de coitados.