O escudo da fama
- 6 de novembro de 2024
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- Theillyson Lima
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A mídia suaviza escândalos envolvendo celebridades ao exemplificar, com o caso do cantor Leonardo, o tratamento privilegiado dado a figuras públicas e suas consequências.
Julia Viana
O tratamento da mídia a crimes e controvérsias envolvendo figuras famosas é um tema que levanta questões importantes sobre a responsabilidade. O caso do cantor sertanejo Leonardo é um exemplo que nos permite analisar a aparência da condescendência com celebridades, especialmente em países como o Brasil, onde o poder dos ídolos da música e do entretenimento é amplamente cultivado e protegido. Embora tenha acumulado uma série de acusações graves ao longo dos anos, Leonardo foi exposto de forma incisiva pelos grandes veículos de comunicação.
Situações como essa não apenas escancaram uma perda no tratamento dada a personalidades públicas, mas também evidenciaram o poder da fama em moldar o discurso midiático e manipular a narrativa em favor dos famosos.
Casos e polêmicas
Recentemente, o cantor Leonardo foi incluído na “lista suja” do Governo Federal, que lista pessoas e empresas acusadas de praticar trabalho análogo à escravidão. A inclusão ocorreu após uma denúncia de trabalho escravo em uma das fazendas do cantor, mas, apesar da gravidade, a cobertura midiática sobre o caso foi discreta. Poucos veículos deram destaque ao episódio, e os que o mencionaram abordaram o assunto de maneira superficial, sem investigar as possíveis implicações e sem pressionar o artista para que se posicionasse de forma transparente.
Outro caso menos divulgado pela mídia envolve um processo em que um homem pede uma indenização de R$ 560 mil ao cantor. Embora a quantidade pedida e as estatísticas do caso sejam notórias, o episódio foi quase invisível na grande imprensa. Apenas alguns portais cobriram o caso, e mesmo esses mencionados mencionam detalhes específicos ou detalhamentos.
Um dos episódios mais graves, e que também foi abordado com pouco destaque, envolve a franquia “Cabaré”, liderada por Leonardo. A Polícia Federal (PF) investiga denúncias de sequestro, assédio sexual, importunação sexual e tráfico de pessoas que ocorreram durante o “Navio Cabaré”, evento promovido pela franquia, entre os dias 12 e 15 de novembro, com participação da dupla Bruno e Marrone. A gravidade das acusações é alta e engloba crimes graves, mas a cobertura desses eventos foi tímida, considerando a seriedade dos fatos e o envolvimento de figuras públicas de grande renome.
Fama como escudo
A situação envolvendo Leonardo não é única e reflete um padrão: celebridades são frequentemente protegidas pela mídia, que atua como um “escudo” ao reportar de forma branda, ocasional ou tardia assuntos que poderiam comprometer essas figuras. No caso do cantor, a cobertura sutil dos casos relatados demonstra como a mídia pode tirar de seu papel informativo ao tratar celebridades de maneira diferenciada. Crimes graves cometidos por pessoas famosas recebem menos atenção, o que perpetua um ciclo de impunidade e permissividade. Em contrapartida, quando o acusado é um cidadão comum, a cobertura tende a ser mais contundente e inquisitiva, buscando frequentemente explorar ao máximo as implicações.
Existem várias razões que explicam esse comportamento. Primeiramente, os artistas, como Leonardo, representam valores de mercado e detêm audiências abrangentes. Isso faz com que os veículos de mídia evitem publicar reportagens que possam desagradar essas audiências ou comprometer parcerias publicitárias. Além disso, as grandes empresas de comunicação tendem a depender de relações com as celebridades para garantir o acesso a eventos e entrevistas exclusivas, o que fortalece a aliança entre a mídia e os artistas.
Outro ponto é a habilidade das celebridades em controlar as narrativas a seu favor. Muitos famosos têm assessores de imprensa e equipes de relações públicas que gerenciam crises e moldam as notícias que chegam ao público. Com isso, garante que apenas as versões menos atraentes de suas polêmicas ganhem visibilidade. No caso de Leonardo, por exemplo, não houve grandes interferências midiáticas sobre os processos legais ou as investigações policiais, o que sugere a possível atuação dessas equipes para minimizar o impacto dessas notícias.
O impacto do acobertamento
O fato da mídia optar por um tratamento suave com celebridades cria um desequilíbrio na forma como a sociedade enxerga a justiça. Quando a cobertura midiática é seletiva, indicando que crimes ou abusos cometidos por famosos são menos graves ou menos relevantes, mostrando uma mensagem perigosa de que há privilégios implícitos para certas figuras públicas. Isso mina a confiança do público na imparcialidade e na justiça do sistema judicial e midiático, incentivando uma cultura de impunidade.
Além disso, essa prática é desrespeitosa com as vítimas, que acabam vendo seus casos minimizados ou até ignorados pela imprensa. As pessoas afetadas por esses crimes ou abusos ficam em uma posição desvantajosa, muitas vezes sem espaço para contar suas histórias ou receber o apoio necessário para buscar justiça. No caso do “Navio Cabaré”, com as denúncias envolvendo crimes que afetam diretamente a integridade física e psicológica das vítimas, o silêncio por parte da mídia pode ser devastador para quem sofreu essas experiências.
A ética e o papel da mídia
A ética jornalística exige imparcialidade e compromisso com a verdade, independentemente de quem esteja envolvido. Ou seja, ao negligenciar ou minimizar crimes cometidos por celebridades, a mídia abandona seu papel de fiscalizador e é cúmplice da perpetuação de um status quo elitista. Em vez de adotarem uma postura de confronto e investigação, os veículos se tornam instrumentos de manutenção do poder e da influência de personalidades, ignorando os interesses e o direito à informação da sociedade.
O caso de Leonardo é apenas um exemplo dentro de um interesse maior. Vários outros artistas, políticos e figuras públicas são tratados de maneira branda em seus escândalos. Dessa forma, a mídia errou ao não cumprir seu papel de expor e investigar esses episódios de maneira igualitária. Numa sociedade onde todos deveriam ser julgados pelos mesmos parâmetros, essa diferenciação midiática cria um sistema de dois pesos e duas medidas.
Como o público pode reagir?
Diante da evidente visão midiática, é fundamental que o público adote uma postura crítica em relação às notícias e busque informações em fontes alternativas. A diversidade de informações, especialmente em tempos de mídias sociais e plataformas digitais, oferece uma oportunidade única para que as pessoas acessem versões mais abrangentes e menos influenciadas por interesses comerciais ou políticos.
Além disso, o público pode pressionar por maior transparência e responsabilidade por parte dos veículos de comunicação. Exigir que as celebridades sejam tratadas da mesma forma que qualquer cidadão comum é um passo importante para que a justiça e a igualdade prevaleçam no discurso midiático. Afinal, uma mídia justa e responsável é essencial para que a sociedade possa se desenvolver de forma ética e equilibrada.