“Nós já mostramos capacidade”
- 25 de novembro de 2019
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- Thamires Mattos
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Gabriel Buss
Beth Carmona é uma das fundadoras do Midiativa (Centro Brasileiro de Mídia para Crianças e Adolescentes), e atual presidente do órgão. Formada pela ECA/USP, com cursos dentro e fora do Brasil, possui uma trajetória de mais de 25 anos que trata da qualidade da mídia. Integrante de júris e concursos internacionais, como o Emmy International Awards, também é avaliadora de projetos infantis em comissões nacionais da Ancine e de fora do país. Já dirigiu a programação da TV Cultura de São Paulo. Foi diretora dos canais do grupo Discovery América Latina e atuou no Disney Channel. Presidiu por cinco anos a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto, responsável pelas emissoras federais TVE-RJ e Rádios MEC.
Gabriel Buss: A senhora tem uma vasta carreira na produção infanto-juvenil. Já desenvolveu trabalhos em diversos canais, entre eles o Disney Channel. O que é primordial nessas produções?
Beth Carmona: Hoje, percebendo a força que o audiovisual possui e a maneira da sua representação na sociedade de uma maneira tão intensa, é muito importante que o produtor/criador que queira falar com uma criança, em primeiro lugar, esteja bem próximo do público ao qual ele está se dirigindo, entenda as fases de desenvolvimento da criança e a percepção infantil de uma maneira muito própria. O primeiro passo para você fazer um conteúdo bom para as crianças é conhecê-las ao máximo, e, a partir daí, sair para criar e chegar a elas com uma linguagem que seja bem próxima, para alcançar o objetivo desejado.
GB: Você também representa o pensamento latinoamericano em congressos e concursos internacionais. Além da cultura diferente, qual o diferencial dos programas desenvolvidos aqui na América de outros continentes?
BC: Durante muitos anos, nós só recebíamos conteúdos de fora, e tínhamos uma indústria/produção muito acanhada para as crianças na América Latina como um todo. De 10 a 15 anos para cá, a situação mudou, porque, de alguma forma, houve um despertar para produção de conteúdos infantis, que se fazia urgente e necessária.
Alguns grupos tiveram um papel importante ao perceberem que a criança brasileira/latinoamericana tinha o direito de ver sua história retratada nas telas e ver um pouco da sua cultura também. A reprodução dos lugares onde essa criança vive, as pessoas com quem ela convive, ajuda na constituição de ser. Todos os países latinoamericanos, de alguma forma, acordaram um pouco para essa situação. Tendo ou não incentivos governamentais, iniciaram esse processo de chegar mais perto, nas suas produções, das comunidades onde eles vivem. Isso faz uma diferença muito grande.
GB: A senhora é cadastrada na Ancine (Agência Nacional do Cinema) e já atuou como avaliadora de conteúdos. Como vê as produções brasileiras para o público infantil?
BC: Acho que cresceram. Mas, de novo, tem pouco investimento, pouco espaço. Nós já mostramos capacidade. O “Show da Luna”, uma produção nacional que está no canal Discovery Kids há muitos anos, tem índices de audiência altos e possui potencialidade de ensinar a criança um pouco mais sobre a ciência. Essa é uma série brasileira que já saiu do país, inclusive, mostrando o tamanho da sua relevância. Mas, para que projetos como esse possam se desenvolver e competir com o mercado internacional, que é tão forte, precisamos de incentivo.
GB: Como produzir um conteúdo de qualidade e que fortaleça a cultura em um país como o Brasil, tão grande e vasto em questões culturais e costumes?
BC: Acho que a Ancine, até pouco tempo, tinha uma série de editais e incentivos, seja para desenvolvimento, ou, até mesmo, para produções que contemplavam muito as questões regionais e de representatividade. Nesse momento, as coisas estão muito paradas, e a Ancine está em xeque. Isso é muito preocupante para a continuidade desse trabalho.
GB: Por um tempo, a senhora coordenou a programação da TV Cultura São Paulo, que, na época, foi premiada e muito elogiada. A TV Cultura produz e produziu muitos conteúdos infanto-juvenis que foram e ainda são agregadores e relevantes. Quão desafiador é trabalhar pensando em conteúdo que trabalhe a educação e o estimulo de crianças em um país que ainda investe tão pouco na aprendizagem?
BC: É, de fato, muito desafiante. Mas, como trabalhar com esse conteúdo e com esse público é uma coisa bem apaixonante, você depende muito das pessoas que são insistentes, que não “baixam” a guarda. Você tem muitos [produtores/as] tentando, de diversas maneiras, inclusive com coproduções entre países. Mas, existem momentos que tem mais dinheiro, outros que tem menos. Enfim, é um processo sempre devagar e contínuo. Nunca será fácil – nem aqui e em nenhum lugar. Entretanto, é comprovado que o “casamento” entre o audiovisual e a criança é muito forte, e precisa não só de produção, mas, também, de muito cuidado e responsabilidade.
GB: Aproveitando o gancho: o passado e o presente apresentam desafios diferentes?
BC: Muito diferentes. Quando eu comecei na TV Cultura há 20, 30 anos, você não tinha nem a TV por assinatura. Hoje, você tem a TV por assinatura, já com seus dias ameaçados, com 12 canais que oferecem conteúdo infantil 24 horas por dia. E, mesmo assim, você tem a internet, através do YouTube e aplicativos. Existem milhares de aparelhos para chamar atenção dessas crianças que hoje vivem nessas multiplicidades de canais e de telas, e em um constante “assédio”, que lhes oferecem conteúdo o tempo todo. Por isso, as pessoas que desejam trabalhar nesta área devem possuir um nível de atualização muito alto.
GB: Como comentamos, vivemos uma era digital onde o audiovisual é essencial na educação, no desenvolvimento de uma criança, inclusive nas escolas. Como implementar conteúdos de ensino, como matemática, geografia, através das produções deste segmento?
BC: Acabei de participar de um festival de ciências, e os próprios conteúdos que já existem são muito passíveis de serem utilizados dentro da sala de aula. Se o professor tem um pouco de tempo de separar conteúdos audiovisuais e de ver qual se encaixa na sua didática, já se encontram muitos materiais específicos sobre. Por exemplo, o Dia da Independência. O professor pode usar um vídeo para contar sobre este tema. Existem milhares de conteúdos que estão disponíveis e que podem servir de pretextos para iniciar uma aula. O audiovisual é uma linguagem que não substitui o professor e nunca o fará, mas pode ajudar dentro da sala de aula a abrir a mente dos alunos. É tudo uma questão do preparo do docente e como utilizar esses materiais dentro da escola.
A escola que não utiliza isso acaba ficando para trás, porque a criança tem tanto acesso à informação que não vai conseguir ficar em um lugar que não use esse mecanismo. Qualquer conteúdo pode ser introduzido através do audiovisual; através de filmes e desenhos.
GB: Uma das temáticas do Midiativa é o que é bom para criança e o que não é. Como os pais podem identificar esses conteúdos audiovisuais?
BC: Nós produzimos, há alguns anos, uma lista de 10 mandamentos da qualidade do conteúdo infantil. Ela está um pouco defasada, mas serve para ajudar os pais na hora de selecionar [programas]. Para montar esses mandamentos, nós conversamos com pais e filhos e fizemos um “meio termo”. Ao assistir o conteúdo e encontrar um dos requisitos, o pai pode saber que o programa é bom. Não tem nenhum que vá cobrir os dez, mas, se cobrir de quatro a cinco, já está muito bom. Hoje, as pessoas sabem muito reconhecer o que não é bom, mas se questionam sobre o que é bom. Aquilo que abre a mente; o que não trabalha com estereótipos – pois, trabalhar de maneira forte com estereótipos pode incentivar o bullying –; a diversidade; tudo isso são coisas boas e muito importantes.
Segue a lista dos mandamentos:
- Confirmar valores (transmitir conceitos como família, respeito ao próximo, solidariedade);
- Incentivar a auto-estima (não reforçar preconceitos nem estereótipos);
- Preparar para a vida (propor temas importantes para a futura vida profissional e social);
- Gerar curiosidade (despertar o gosto pelo saber);
- Não ser apelativo (não banalizar a sexualidade e a violência; não induzir ao consumismo);
- Ser atraente (ter música, competições, ação, humor; falar a linguagem do público infanto-juvenil);
- Despertar o senso crítico (fazer a criança e o jovem refletirem, mostrar a diversidade);
- Mostrar a realidade (apresentar limites e consequências, sem agressividade);
- Gerar identificação (mostrar dúvidas e situações próprias da infância e da adolescência);
- Ter fantasia (estimular a brincadeira, a fantasia e fazer sonhar).
Fonte: Mostra de Cinema Infantil/ Midiativa
GB: Há uma preocupação dos pais com a quantidade de conteúdo que as crianças consomem diariamente. Como filtrar o tempo sem deixar que a criança tenha contato com a educação através dos programas?
BC: É muito difícil, mas acho que tudo que é demais faz mal. Então, nós não precisamos abolir totalmente o celular, mas, estabelecer limites. Delimitar um horário. Buscar observar o que as crianças assistem, porque elas assistem tais conteúdos e conversar com elas sobre isso, para, de fato, entender as motivações que a levam a preferir o desenho A ou B. Essa, de fato, deve ser uma prática que não pode ser perdida.
GB: Você tem um sonho para o futuro da produção infanto-juvenil do Brasil?
BC: Poder produzir mais conteúdo de ficção com pessoas. Há algum tempo, isso não era nem pensado no Brasil. Hoje, já existem conteúdos nacionais assim, e não mais apenas séries com escolas americanas e os tradicionais armários. Hoje, você consegue ver mais as escolas com crianças brasileiras, isso faz uma diferença. Então, um sonho seria de fato as crianças representadas neste segmento. Mais animações que mostrem as culturas. Mas não só isso: mini documentários que transmitam a realidade das crianças de norte a sul, para que uma criança do Sul possa ver um conteúdo de uma criança da Amazônia, brincando em uma canoa. Que essa, por sua vez, possa ver o conteúdo de uma criança do Nordeste que está brincando na praia. Nós queremos que a criança indígena seja representada com seu mundo, suas crenças e lendas; e as crianças negras e o seu papel de representação. Enfim, tem muita história que ainda falta ser contada e precisa ser apresentada por esse Brasil.