Linchamento em slow motion
- 23 de agosto de 2022
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Menino executado injustamente aos 14 anos não tem a chance de ver sua inocência provada.
Paula Orling
“Na verdade, George Stinney foi linchado em slow motion”. Esta foi parte da descrição do NY Times, em 24 de junho de 2014, a respeito da execução de George Junius Stinney Jr. O menino inocente de apenas 14 anos e, vale dizer, preto, foi condenado pela morte de duas meninas brancas em 1944. Betty June Binnicker e Mary Emma Thames foram encontradas mortas na área rural de Clarendon County, na Carolina do Sul. Um mês depois, a culpa foi atribuída ao menino da religião batista. Em menos de três meses após a condenação, Stinney foi morto em uma cadeira de choque, se tornando o estadunidense mais novo a ser executado em nome da justiça. Apenas após 70 anos, em 2014, Stinney foi considerado inocente.
Durante a prisão do menino, registros policiais foram feitos. “Idade: 14. Altura: 1,55m (cinco pés e uma polegada). Peso: 42,75kg (95 pounds). Sua classificação, “preto”; sua religião, “batista”; sua ocupação, “nenhuma”. Além das considerações comuns, a palavra “pequeno” foi adicionada à ficha. E existiu um motivo para o acréscimo: George Stinney Jr. era uma criança! Uma criança inocente que lutou até o último segundo pela sua vida. Os registros policiais do dia da execução do menino informam que os agentes tiveram dificuldades para colocá-lo na cadeira de choque, visto que se debatia até o último momento. Seu julgamento durou apenas um dia. Para que a máquina fosse capaz de feri-lo, listas telefônicas foram colocadas no assento, para que o menino ficasse mais alto.
Preconceito racial
Mas se engana quem pensa que essa situação chocou a população estadunidense. Pelo contrário, muito pouco foi divulgado pela mídia por um principal motivo: a etnia do réu. Sendo ele preto, em meio à uma sociedade completamente segregada, Stinney nunca teve a chance de ter voz em meio à elite culta branca. Os que tiveram o poder de lutar contra a injustiça feita contra o menino foram omissos devido à cor dele.
No mesmo ano em que o menino foi morto, o economista sueco Karl Gunnar Myrdal escreveu suas impressões sobre os Estados Unidos em um dos seus livros mais renomados, “An American Dilemma” (Um Dilema Americano, em tradução livre). Nesta obra, Gunnar questiona o racismo norte-americano e a postura da população entre fazer o que consideraria certo e estar alheio à condição dos pretos como o “grande dilema americano”. Neste sentido, George Stinney Jr. foi vítima de um dilema americano, quando a população optou por deixar valer o preconceito ao invés de buscar a fundo provas para embasar um julgamento, que acabou por condenar à morte uma criança inocente.
Negligência de líderes governamentais
Durante a prisão do menino, sua família, igrejas da região e a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (organização em prol dos direitos humanos para pessoas pretas) buscaram proteger George, mandando uma carta para o governador da Carolina do Sul, Olin D. Johnston. Ele, por sua vez, respondeu com uma acusação sem, jamais, conseguir comprovar seus argumentos. Isso porque nunca poderia, de fato, comprová-los, já que eram falsos.
Uma resposta mal-dada ou pouco fundamentada de um governante é comum, mas, o que não é mais tão rotineiro é a completa abstenção da mídia em um caso de um condenado à morte – especialmente se o réu é uma criança. Contudo, para o caso de George Stinney Jr., apenas algumas linhas em meio a tantas do NY Times foram destinadas.
A nota diz: “SUMTER, Carolina do Sul, 11 de junho. O capítulo da Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor da Carolina do Sul protestou hoje ao governador Olin D. Johnston contra a execução marcada para sexta-feira, do menino preto de 14 anos pela morte de uma menina branca. George J. Stinney de Alcolu foi condenado pela morte de uma das duas meninas espancadas até à morte com um espigão ferroviário.”
Ignorância populacional incentivada
Apesar da repercussão que este evento teve nos últimos períodos, na década de 1940 pouco se falou sobre o assunto. Os outros jornais e tablóides que noticiaram a execução não têm registros do caso em seus acervos.
Diferentemente da atual tendência do NY Times de demonstrar sensibilidade com temas delicados, o jornal não teve uma atitude semelhante na década de 1940. Ele foi indiferente e contrariou o princípio jornalístico básico da apuração de dados. Neste sentido, os leitores foram levados a crer na irrelevância dessa pauta, já que o “quarto poder” que a mídia representa os incentivou a desconsiderar a necessidade de uma apuração de dados que pudesse provar, ou não, a culpabilidade de Stinney. Portanto, os americanos com poder de defenderem o garoto eletrocutado em nome da justiça não tiveram a chance real de se indignarem com a situação, já que a única informação que receberam foi proveniente de uma nota de 14 linhas do NY Times.
Tentativa de reparação histórica
O caso de Stinney voltou à tona 70 anos após a execução do garoto, quando o caso foi aberto para novo julgamento. Neste, a mídia passou a defender o réu já executado. Percebendo que não existiram provas por escrito da culpabilidade de Stinney, passaram a mostrar a inocência, principalmente depois de “ser absolvido” pelo júri. Neste momento, jornais de todo o mundo exploraram a fundo a situação, analisando diversos ângulos do caso e são estes registros que se tem acesso atualmente.
A partir da fama que o caso alcançou, muitos basearam novas obras na história, como o filme “A espera de um milagre”. Apesar do produtor Stephen King não ter confirmado que se baseou na história de Stinney, estudiosos do cinema afirmam que existem semelhanças demais para que seja apenas uma coincidência.
A tendência de tentar compensar um dano feito no passado é crescente nos Estados Unidos e os jornais representam grandes aliados neste processo, uma vez que têm poder. O poder das mídias pode ser usado de diferentes maneiras, para a manipulação da população ou para amenizar os danos provocados no passado. Uma tentativa de correção semelhante aconteceu no caso “Os cinco do Central Park”, no qual Steven Lopez, com a ajuda da mídia, teve sua sentença anulada 33 anos após a condenação.
Atualmente, todo o caso de Stinney é visto como um tremendo absurdo, mas esta opinião era muito diferente no período. Naquele momento, a morte do garoto foi considerada um benefício comum por grande parte da imprensa, visto que boa parte da população o considerava um risco à segurança pública. Nesse caso, a mídia não pôde trazê-lo de volta, mesmo com os tempos mudados e o preconceito reduzido.
A mídia poderia ter ajudado na libertação do menino condenado, mas optou por se manter alheia à situação, optou por não se expor. Em matéria publicada pelo NY Times em 2014, uma declaração de Bryan Stevenson, diretor executivo do Equal Justice Initiative em Montgomery, que representa os réus indigentes da pena de morte no sul dos EUA, foi registrada. “Eu não penso que eles se importaram se ele [Stinney] era culpado ou inocente. Se eles tivessem evidência de prova-positiva que ele não era culpado, eu não penso que teria mudado alguma coisa.”