Inventando Anna: é possível ser mãe e jornalista ao mesmo tempo?
- 8 de março de 2023
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- Theillyson Lima
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A série aborda pautas relacionadas a gravidez e à maternidade durante o exercício da profissão.
Gabrielle Ramos
Você com certeza já assistiu algum filme ou série em que o jornalista era o personagem principal ou um dos fundamentais para a história. Mas nessas produções, como esse papel era retratado? O jornalista era alguém que sempre estava investigando algum acontecimento, era obcecado por trabalho ou até mesmo alguém invasivo e mal educado?
Dentre tantas características desse profissional, muitas negativas acabam se sobressaindo quando mostradas nas produções audiovisuais. Contudo, isso não necessariamente é o que acontece na vida real. Afinal, o jornalismo possui importantes e diversas funções que na maioria das vezes são pouco retratadas.
A minissérie Inventando Anna aborda diversos temas do mundo jornalístico, dentre eles estão: qual o sentido da escrita jornalística, como deve ser a abordagem com as fontes e quais são os direitos dela, dentre outras. Apesar de tantas possibilidades, esta análise será baseada em como a série retrata a principal jornalista da trama, Vivian Kant, que sofre com questões relacionadas a gravidez e ao seu posicionamento no mercado de trabalho por ser mulher.
Sobre a minissérie
Inventando Anna é uma produção original da Netflix, dos mesmos criadores de Grey’s Anatomy. A trama conta a história de uma jornalista, Vivian Kant, durante a investigação da vida de Anna Delvey, uma socialite aparentemente muito rica, que aproveita uma vida de alto padrão, luxuosa e glamurosa.
Anna usa os status de herdeira alemã como fachada para dar golpes em bancos e em pessoas ricas. Porém, antes de conquistar seu objetivo, que é criar a Fundação Anna Delvey (FAD), seus crimes são expostos e ela é presa. Descobrir como essa jovem misteriosa quase conseguiu alcançar sua meta é o foco da jornalista.
Quem é Vivian Kant?
Vivian Kant é uma jornalista que teve sua carreira arruinada após um erro fatal, que aconteceu necessariamente por sua culpa. Tudo começou com umas das fontes usadas em um artigo escrito por Vivian, pois a história contada parecia ter algo estranho. Ao perceber isso, a jornalista pediu para que o seu editor, Paul, verificasse mais uma vez antes de publicar. Contudo, ele não faz isso.
Esse acontecimento muda completamente a vida da jornalista, já que quando a publicação vem à tona, as pessoas descobrem que a informação é falsa. Por isso, a carreira de Vivian vai por água abaixo e ela se torna um exemplo de péssima profissional. Mesmo sem ser demitida, perde sua credibilidade e sua mesa é colocada numa área conhecida como “o matadouro dos jornalistas”, chamada de “escribéria” pelos funcionários.
Uma jornalista grávida e a sua obsessão pelo trabalho
No trabalho, os colegas percebem quando Vivian não está se sentindo bem, mas a jornalista não gosta quando perguntam sobre o seu bem-estar. Sempre continua trabalhando independente da situação. Em um dos episódios, ela faz a seguinte pergunta para um de seus colegas de trabalho: “você está no meu útero para saber?”.
Essa postura de Vivian reflete como muitas mulheres se sentem no ambiente de trabalho. Uma vez que, se elas demonstrarem alguma fraqueza ou dificuldade em realizar alguma atividade, podem ser demitidas. De acordo com a pesquisa “Mulheres perdem trabalho após terem filhos” da Fundação Getúlio Vargas, cerca de 50% das mulheres estão fora do mercado de trabalho 24 meses após a licença maternidade. Sendo que, na maioria das vezes, essa saída acontece sem justa causa e por iniciativa do empregador.
Além de passar horas trabalhando durante o dia, Vivian também continua falando sobre Anna em casa. De todas as cenas no ambiente familiar, cerca de 90% delas envolvem a narrativa da matéria, ou seja, fica subentendido que a jornalista não consegue esquecer do trabalho até mesmo quando tem o seu tempo livre. Uma cena que mostra a prioridade com a história em relação a gravidez é quando a jornalista deixa de ir a um exame de ultrassom para assistir a audiência sobre o caso Anna.
Será que todos os jornalistas priorizam a sua carreira tanto quanto Vivian fez? Dados da pesquisa “Perfil do Jornalista 2021”, realizada pela UFSC, mostram que o trabalho do jornalista é exaustivo para muitos que exercem essa profissão. Cerca de 42% dos jornalistas possuem carga horária superior a 8h por dia. Isso mostra que trabalhar durante período de descanso ou lazer não é incomum.
Durante a trama, Vivian explica para o seu marido que a alegria de ter um filho não vai compensar a perda da sua carreira. Esse é o motivo pelo qual ela afirma precisar “detonar” antes do parto, pois precisa ter o bebê sabendo que deu o seu melhor e conseguiu. Além disso, ela também fala que “as pessoas têm filhos o tempo todo”, por isso não considera que eles são especiais.
A mesma pesquisa da UFSC afirma que essa condição de trabalho exaustiva produz efeitos nocivos sobre os profissionais, principalmente por causa do nível de estresse e das formas de assédio moral. Isso evidencia os riscos que essa condição pode oferecer a todos os jornalistas e principalmente para casos especiais, como o das jornalistas grávidas.
Existe machismo na profissão?
Um dos colegas de trabalho, Barry, fala que Vivian é louca por trabalhar tanto dessa forma durante a gravidez. Outra jornalista, Maud, para quem ele estava direcionando o comentário, a defende dizendo que ela tem seus motivos. Contudo, Barry rebate dizendo que ela cometeu um erro na carreira, dando a entender que agora ela está sofrendo as consequências. Mad questiona: “mulheres não podem errar?”, deixando implícito que se o mesmo erro tivesse sido feito por um homem, as consequências teriam sido completamente diferentes.
No decorrer da série, Vivian precisa se humilhar e discutir com seus chefes em praticamente todas as cenas de interação deles. Pois, por seu erro, não consegue ter suas ideias levadas em consideração. Além disso, quando recebe aprovação para alguma coisa é por muita insistência dela ou por pena dos outros.
Essa realidade não é apenas ficcional. Um exemplo disso é o que aconteceu com a jornalista Mariana Fanti, que apareceu comendo um pedaço de chocolate durante o ‘Jornal da Manhã – Segunda Edição’ da Jovem Pan, em 2021. Durante a transmissão, ela não tinha um monitor com as imagens em tempo real, assim não sabia que estava no ar. Mas, mesmo sem ter nenhuma reclamação anterior da competência de seu trabalho, foi demitida. Será que se esse episódio tivesse acontecido com um homem, teria o mesmo desfecho?
A situação de Vivian não permanece igual por todo o decorrer da trama. A partir do momento que a jornalista entrega o artigo e ele é publicado, ganha popularidade. Assim, após a matéria se tornar a melhor dos últimos 5 anos da revista, o editor passa a venerar e aceitar as ideias de Vivian. Além disso, ele também propõe que ela mude de mesa e saia da “escribéria”.
Essa postura de Paul mostra que Vivian só ganhou credibilidade após ter acertado. Se a matéria não tivesse bombado, o esforço da jornalista teria sido levado em consideração? Dentre os jornalistas, 58% são mulheres, de acordo com a pesquisa “Perfil dos Jornalistas Brasileiros (2021)”. Em uma realidade na qual as mulheres estão majoritariamente no ambiente de trabalho, por que não é possível receber credibilidade?
Realidade utópica
Por meio dessa série, é possível perceber que ser mulher, mãe e jornalista ao mesmo tempo não é uma tarefa fácil. É difícil ter credibilidade e ser devidamente notada por seus feitos quando se é mulher. Ideal seria que as jornalistas não precisassem lidar com as dificuldades que o trabalho jornalístico impõe a elas. Contudo, em meio a uma cultura corporativa machista, essa realidade se torna uma utopia.
Afinal, é realmente preciso que uma jornalista grávida que cometeu um erro no passado precise comprometer a sua integridade física e psicológica para conseguir reconhecimento do chefe e a redenção da sua carreira?