Espelhos da sociedade
- 5 de setembro de 2015
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- Thamires Mattos
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Na entrevista dessa edição vamos descobrir de onde vem a relação entre a mídia e a religião, como isso é exposto na publicidade e porquê esta é chamada de “espelho da sociedade”. Será que vender Deus e convicções religiosas é algo lucrativo? Para explicar o assunto, o Canal da Imprensa conversou com Rodrigo Follis, doutorando em Ciências da Religião e mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo.
Daniela Fernandes
Canal da Imprensa: A relação entre a publicidade e a religião está se tornando cada dia mais intensa. Quando surgiu isso?
Rodrigo Follis: É sempre muito complicado traçar quando algo surgiu, pois os processos históricos nunca se dão de uma maneira abrupta. Eles sempre vão acontecendo. Existem as demarcações, porém há todo um processo e um contexto sócio-cultural que leva a um nível final. Então, é complicado dizer quando.
Hoje, ninguém se pergunta o porquê do uso da nomenclatura “Publicidade e Propaganda”. Até um tempo atrás havia uma diferença entre o que era publicidade e o que era propaganda. Propaganda viria do latim “propagare” que é anunciar. Um anunciar que surgiu com a religião, principalmente, nas Cruzadas, quando essas propagavam o evangelho. O próprio surgimento do marketing moderno e da publicidade como a conhecemos atualmente deriva de uma noção de que é preciso contar com maior eficiência uma mensagem religiosa. Logo, podemos datar isso de um processo muito longo.
Penso que, hoje, publicidade não tem mais a ver com essa questão religiosa, porém dizer que ela não tem a ver com essa ideia religiosa não quer dizer que a fonte primária dela não seja a religião. A origem da publicidade e da religião, eu colocaria como algo intrínseco, como se uma tivesse a necessidade da outra. Assim, as duas estão juntas e não podem ser indivisíveis em seu surgimento.
Canal da Imprensa: Como as peças publicitárias expõem a relação entre consumo e religião?
Follis: Primeiramente, preciso definir consumo e religião.
Consumo pode ser, no âmbito geral, tudo aquilo que se consome no sentido de esgotamento do produto ou pode ser consumo no sentido capitalista que é aquilo que se consome em trocas econômicas, as quais podem ser monetárias ou simbólicas.
Religião é algo relativamente novo, utilizado há cerca de 200 anos. O judeu não perguntava de qual religião alguém era. Simplesmente, ele nascia judeu e era judeu ou a pessoa nascia hebreia e era hebreia. Religião tem haver com nacionalidade, estilo de vida, quem se é, geografia e todas as coisas que compõem a vida. A partir da Revolução Industrial, da Revolução Francesa e dos acontecimentos do mundo moderno, o conceito de religião torna-se algo necessário. O mundo se globalizou e virou uma aldeia, no sentido de que se tornou menor. São distintas nacionalidades relacionando-se entre si. Sendo assim, surgiram as nomenclaturas de diferenciação, pois não há total semelhança na diversidade. Para isso, dá-se o nome de religião.
Publicidade e religião começam a se separar quando se tem um mundo diferente. Se antes a missão era proclamar uma questão religiosa, agora não apenas isso ocorre mas também propaga-se uma questão comercial. Há um desenvolvimento natural. Não havia necessidade de se perguntar o que estava sendo propagado ou de qual religião se pertencia. Antigamente, religião era algo social e propaganda era algo intrínseco ao ser, estava dentro da religião e anunciava a fé. Contudo quando as relações humanas passaram a ser modificadas e estarem mais próximas globalmente, a religião foi tirada do âmbito da sociedade e passou para o âmbito do indivíduo. E, no caminho oposto, tirou-se a publicidade do âmbito da religiosidade e a colocou no âmbito da sociedade.
Peça publicitária nada mais é do que um espelho do real e do social. Existe uma sociedade e toda produção midiática espelha essa sociedade, ou seja, ao se olhar para essa peça publicitária (jornal, filme, etc) vemos um espelho de quem nós somos. A mídia retrata o que o público quer, precisa e as discussões emergentes da sociedade. Como eu quero vender para você que é meu público alvo, eu entendo você e vou vender a partir daquilo que você entende e concorda. A relação das peças publicitárias é esta: peças publicitárias, espelhos da sociedade. Existe a relação entre consumo e religião. Ora a religião tem predominância na identidade de uma sociedade ora o consumo. Ao final, tudo isso será refletido na publicidade.
Canal da Imprensa: Há estudos na área de mídia e religião, mas por que há poucos estudos sobre, especificamente, a publicidade e o discurso religioso?
Follis: A publicidade é pouquíssimo explorada no mundo e, principalmente, no Brasil. Por esse motivo, não há muitos estudos sobre a área. O publicitário é extremamente mercadológico e fluido, além da publicidade ter sido sempre mal vista, sobretudo na academia pública brasileira que tem um foco marxista muito forte, onde muitas vezes se é anticapitalista. Para essas pessoas, religião e publicidade são alienantes, por isso, quando existem estudos, estes servem para criticar ambas e não para entendê-las ou defendê-las.
Essa linha de pesquisa publicidade e religião é uma questão frágil que está mudando ao longo dos anos. Algo que demora, pois é preciso mudar o pensamento dos estudantes do curso.
Canal da Imprensa: Qual a importância de se estudar essa temática?
Follis: É importante estudar tudo aquilo que exprime uma relação social, pois quando eu estudo algo que está na sociedade eu acabo compreendendo-a.
Há um preconceito frankfurdiano, marxista e de outras escolas que dizem que quaisquer relações que se tem com a mídia é de alienação. Para esses, a mídia não serve como documento histórico ou como expressão de uma parcela da sociedade.
Religião existe e publicidade também. Então, nada melhor que estudá-las. Entretanto há uma inversão no despertar do interesse sobre esse tema. Procura-se muito entender como a publicidade é estudada na religião. Isso ocorre porque Edir Macedo, Valdomiro Santiago, Bola de Neve e várias outras igrejas e denominações usam de vendas, marketing e propostas comunicacionais muito bem delimitadas e fortes. E não falo isso com demérito a elas, pois quando elas aparecem crescendo e apresentando demasiado poder – haja vista a bancada evangélica -, surge a curiosidade de se estudar o porquê desse fenômeno.
Mas poucos se depararam com o oposto disso. Publicidade usando a religião é um assunto de suma importância. O público evangélico é um público que compra, diferentemente dos católicos. Eis a cultura gospel que não me deixa mentir. São pessoas que definem políticas públicas e têm influência sobre a sociedade. E a pergunta que fica é, como eles chegaram lá e se mantêm com tanto poder de atuação? Isso ocorre porque 25% da população brasileira é mais unida do que os outros. A publicidade vai perder isso? A publicidade que perder isso é boba. É preciso que se comunique com essas pessoas, elas compram, elas têm dinheiro, elas gastam…
Canal da Imprensa: Dê um exemplo de peça publicitária com discurso religioso.
Follis: Há inúmeros exemplos. Veja dissertação de mestrado de Rodrigo Follis em: http://ibict.metodista.br/tedeSimplificado/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3117
Canal da Imprensa: Muitas igrejas possuem hoje uma rede de comunicação com tv, rádio, internet. A religião que se atrela a algum tipo de mídia tende a perder a sua essência?
Follis: Essa é uma pergunta que vale um milhão de dólares. Porque a ciência sempre tem a preocupação em não ser profética. Qualquer ciência que fala o que acontece no futuro e cria uma regra vira profecia. A ciência por definição tem que ver o que aconteceu traçando paralelos, tendências. Mas cada caso é um caso, cada realidade é uma realidade. Tem coisas que funcionam para um dado momento que não vão funcionar para o outro. Então, podemos falar eternamente sobre essa pergunta. Isso ocorre principalmente com a essência. A essência que se tem hoje é uma essência diferente da que se tinha no passado, por questões comportamentais da sociedade. Não havia desafios que se tem nos dias atuais e o contrário também é verdadeiro. A essência não é a priori, ela muda. É complicado definir o que ela é na religião, pois esta tem
muito de verdade presente, ou seja, para cada momento da história, eu acredito que Deus tem uma mensagem específica para um povo. Uma mensagem que vai direto ao cerne das necessidades dessas pessoas. Se nós podemos perder nossa essência? Sim, podemos.
Para mim, a essência do Cristianismo é sempre ser portador da verdade de Deus para o tempo presente. Penso que o grande problema de usar a mídia, e usar inadvertidamente a própria estrutura do capitalismo, é se nós começarmos a ser ‘um’ com o sistema, deixando de transformá-lo e de ser o espírito da mudança da época. Não vejo problema em uma igreja ter centros de mídia, focar na importância do dízimo e dinheiro…Vejo problema quando se vira um com o sistema.
Dussel diz “O oprimido, o torturado, o que vê ser destruída sua carne sofredora, todos eles simplesmente gritam, clamando por justiça:
– Tenho fome! Não me mates! Tem compaixão de mim! – é o que exclamam esses infelizes. […] Estamos na presença do escravo que nasceu escravo e que nem sabe que é uma pessoa. Ele simplesmente grita. O grito – enquanto ruído, rugido, clamor, protopalavra ainda não articulada, interpretada de acordo com o seu sentido apenas por quem “tem ouvidos para ouvir” – indica simplesmente que alguém está sofrendo e que do íntimo de sua dor nos lança um grito, um pranto, uma súplica.”
Assim, o grande problema de se usar a mídia não é a sua utilização, é justamente a protopalavra ainda não articulada. O que isso me impede de ouvir? No que isso me transforma? Isso me transformou em ‘um’ com o sistema, incapaz de ouvir o grito daqueles que precisam de libertação? Se sim, a utilização da mídia é ruim.
Canal da Imprensa: A presença das religiões na mídia aumenta ou diminui a intolerância?
Follis: A mídia não cria a sociedade. A mídia recria a sociedade. A intolerância é causada pela religião? Bom, penso que o ser humano é intolerante. A intolerância vem daquilo que nós somos.
O grande problema é quando o ser humano se acha superior ao outro. Quem foi mais arrogante Charlie Hebdo ou os muçulmanos? Os dois. Porém como se resolve isso? Não se resolve. A revista tem que publicar e os muçulmanos, na visão deles, tem que atirar e defender algo que é sagrado.
A religião tem uma propensão a intolerância, pois ela tem um quê de irracionalidade. A gente não consegue discutir qual deus é melhor, Alá ou Deus. Por isso, a intolerância de Charlie Hebdo, por exemplo, aconteceria a qualquer momento.
Toda relação, principalmente quando falo de intolerância, não se pode ter uma resposta fechada por uma questão metodológica. Porque se eu a fecho, vamos cair na dualidade, ou é X ou é Y. E, na verdade, o que se precisa é de sensatez em ambos os lados.
Canal da Imprensa: Religião virou um negócio ou sempre foi um negócio?
Follis: É possível que religião tenha se tornado um negócio, assim como é possível que a publicidade tenha se tornado religiosa. Havendo um deus desprovido de uma crítica profética, na verdade, não estou vendendo deus, mas sim o próprio sistema. Esse deus, dessa forma, se torna tão pequeno quanto o sistema (por mais que este seja grande). Nesse sentido, tanto a religião vira comércio quanto o comércio e a publicidade se volta para o religioso.