Em busca por respostas
- 30 de outubro de 2017
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- Thamires Mattos
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Os últimos meses deste 2017 foram marcados por catástrofes naturais. Segundo especialistas, a principal causa para o aumento da força desses fenômenos é o aquecimento global. Por outro lado, a violência da natureza não é o único fenômeno a aterrorizar o mundo. Terror, sem dúvida, é o aumento exponencial de atentados que classificamos de “terroristas”. Cresce a força da natureza, cresce também a violência e insensibilidade humana. Será que é preciso mais simpatia com o sofrimento do outro? Devemos refletir sobre o que a sociedade se tornou? Nesta edição, a repórter Thais Fowler conversou com a professora Andréa Gonçalves, cientista social pela Universidade Estadual do Maranhão (Uema) e mestre em Antropologia Política pela mesma instituição. O tema da conversa focou-se no fato de o homem estar perdendo limites em relação ao outro e e as respostas da natureza a esta selvageria.
Canal da Imprensa: O que é um ser humano civilizado?
Andréa Gonçalves: A constituição sócio-histórica das sociedades “modernas” ocidentais, infelizmente, atribui sentido para a noção de “civilidade humana” configurada a partir de“níveis”, “estágios”, ou seja, os grupos sociais seriam classificados, como sendo mais ou menos “desenvolvidos”,a partir de um “grau” de racionalidade investida para se alcançar um dito“progresso”. Essa concepção ideológica foi predominantemente suscitada no século XIX com a consolidação do capitalismo e o predomínio de uma razão instrumental. Em meados do início do século XX, essa perspectiva foi denominada, sociologicamente, como “positivismo” ou “darwinismo social”, segundo a qual as sociedades humanas eram classificadas considerando que os grupos sociais deveriam passar por estágios até atingir um grau de racionalidade científica. Por conta disso,no decorrer da história “moderna”, o imperativo desociedade orquestrado passou a ser regido por uma razão técnico-científica,tangível. É descartada toda forma de compreensão que atribua sentido, às experiências sociais e humanas, com base em explicações denominadas de míticas, filosóficas e/ou especulativas. A humanidade passa a ser impelida a buscar, incessantemente, o “progresso e um “desenvolvimento” econômico, a partir da exploração da natureza pelo ser humano e pela própria exploração do trabalho humano. Distancia-se de qualquer preocupação com as questões sociais. Aqui o reino do mais-valia (lucro), da produção em massa, da agilidade e rotatividade que impacta as relações de trabalho, na Europa do século XIX, tornou-se base que influenciou/influencia o modo como enxergamos o outro até a contemporaneidade. Em consequência, configurou-se um tipo “humano civilizado” em que o “desejável” está assentado paraconstrução de relações sociais objetivas, fluídas, descartáveis “racionalmente” ponderadas. O reino da satisfação dos próprios desejos e necessidades ganha força em detrimento das relações mais aproximadas ou que considerassem a alteridade, a empatia e o altruísmo como características relevantes para essa ideia de civilidade.
CI:Como é possível explicar o fato de que sociedades ditas civilizadas estejam enfrentando situações em que a selvageria do ser humano fica tão evidente? Seria este um paradoxo?
Andréa: Historicamente, associou-se um nível de “civilidade”proporcionalmente a quantouma sociedade poderia deterde instrumentos e ferramentasque pudessem caracterizá-la como tecnológica em busca de um ideal de “progresso” e “desenvolvimento” econômico, como já dito. Por isso, a noção socialmente construída do “ser civilizado”, infeliz e paradoxalmente, em nada tem a ver com a melhoria real das condições e modos de vida de grande parte da sociedade. Presencia-se uma “era tecnológica e digital” que tem reconfigurado o modo de se relacionar dos indivíduos, por ora, aproximando-os e criando oportunidades de relações e trabalho, antes inexistentes, por exemplo, e ora, suscitando, por conta da possibilidade de anonimatonas mídias sociais, a prática de crimes de ódio, intolerância, racismo, preconceito e discriminação social. Compreendendo esses processos, se torna possível perceber o porquê das notícias sobre atos de violência gratuita, assassinatos em massa por ataques terrorista, por intolerância social ou mesmo fundamentalismo religioso.Desenvolveu-se uma sociedade moldada por aquela racionalidade instrumental capitalista e totalmente despreocupada sobre a promoção de um tipo de “desenvolvimento humano e social” para além do mensurável.
O sociólogo ZigmmuntBaumam(1925-2017) indicou em suas teorias como consequência desastrosa dessa“modernidade”uma era de fluidez, incertezas e paradoxos nas relações sociais. As promessas trazidas por essa dita“modernidade” – noção de avanço tecnológico, comodidade, conforto, desejos de consumo e satisfação individual – trouxeram consigo seus “avanços” por um alto preço. Presencia-se a emergência do “ostentamento social”, ou seja, as pessoas são rotuladas por aquilo que possam possuir e não pelas habilidades sociais que possam desenvolver. Quando o “ter” torna-se uma regra de ouro para se qualificar as pessoas, aqueles(as) que não se encaixam no padrão correm o risco de serem anulados socialmente. Contextos como esses têm, por vezes, favorecido com que pessoas socialmente classificadas como inofensivas sejam capazes de cometer atos inimagináveis pelo rechaço social que são alvo.
CI: cada atentado contra pessoas nos leva a entender que a humanidade está caminhando para o caos. Seríamos nós os principais responsáveis por ele?
Andréa: Ao passo que somos sujeitos e agentes das nossas ações, que são sociais, é importante não perder de vista que somos também influenciados pela dinâmica social, cultural, política e econômica ao qual estamos historicamente inscritos. Porém, não se deve justificar, unicamente, os episódios que envolvem atentados, como aqui posto, como fatores de ordem estritamente emocional-psicológicas, visto que mesmo as noções construídas sobre quem somos, o que queremos, o modo como expressamos e sentimos é também fruto de uma construção social.Então, em maior ou menor medida, um tipo de sociedade que afirma e estipula um ideal de “sucesso social” considerando o quanto se poder deter, e não quem se pode ser, tem formatado uma conjuntura social favorável para emergência de indivíduos capazes das maiores atrocidades. Os atentados, como destacado, são situações que evidenciam indivíduos que por se sentirem à margem, anulados pela sociedade, podem desenvolver, como desejo de vingança e revanchismo, a capacidade de eliminar aqueles indivíduos que, por alguma via, não lhes agradam, irritam ou provocam qualquer tipo de revolta. Deste modo que, sem dúvida, é também a sociedade corresponsável, seja por ação e omissão – direta ou indireta – por gerar indivíduos com tamanho nível de frieza e distanciamento social.
CI:Como explicar a falta de empatia entre as pessoas nas sociedades atuais?
Andréa: Somos por vezes levados a construir certos tipos de comportamentos e atitudes muito mais interessados naquilo que o outro, o conjunto social, pensará a nosso respeito – isso inclui pensar sobre os mecanismos de reconhecimento social por ter praticado uma “boa ação”, por exemplo – que propriamente desenvolver ações desprendidas de quaisquer segundas intenções e dotadas de um sentido subjetivo próprio em prol de um bem-estar social e/ou de outro(s) indivíduo(s). Diria que a falta de empatia, paradoxalmente, tem muito a ver com uma “preocupação” exacerbada em demonstrar um tipo de simpatia social.A diferença entre os termos está para o fato de que, enquanto a pessoa simpática demonstra um tipo de postura de alegria, entusiasmo e outras características sociais “louváveis”, e por isso desejáveis, a empatia, está intimamente relacionada com a alteridade, ou seja, a capacidade colocar-se no lugar do outro, buscando compreendê-lo a partir de sua própria visão de mundo. Atitude essa nada conveniente dada a fluidez e instantaneidade das atuais relações sociais. A empatia demanda esforços e tempo investidos em função de outro(s) indivíduo(s) geralmente em um condição desfavorável, vulnerável. Porém, qualificações como paciência, dedicação, abnegação em função de outrem tem sido cada vez menos atitudes cultivadas e/ou apreciadas pela sociedade do imediato, consequentemente, desfavorecendo qualquer prática de empatia social.
CI: Qual o impacto para as sociedades que recebem em seus territórios vítimas de guerra, catástrofes e terrorismo?
Andréa:O impacto pensado aqui, para o nível das relações sociais, deveria ser da prática da empatia, alteridade, altruísmo. No entanto, o que se tem percebido, por vezes, são atitudes intolerantes que classificam arbitrariamente esses grupos sociais como um tipo de “risco” para a comodidade social de certos grupos sociais privilegiados. No tocante à situação dos imigrantes e refugiados o que se tem notado é a propagação e reprodução de discursos, por parte dos indivíduos alheios àquelas situações, que visam criminalizar esses grupos sociais, tratando-os como a “mais nova” escória social. Existe inclusive um imaginário de responsabilização social daqueles grupos sociais pelo possível aumento dos índices de vulnerabilidade social, como a violência, precariedade do sistema público de saúde, por exemplo. Poucos indivíduos são capazes de perceber que aquelas pessoas que migram e buscam refúgio por serem impactadas por guerras, catástrofes naturais e pela ação do terrorismo, por exemplo, são vítimas de um contexto que as marginaliza duplamente, posto que, além de serem impelidas a se deslocarem para outras localidades – e por isso expulsas de seus locais de origem – são ainda rechaçadas por outros indivíduos que, minimamente, deveriam respeitar e buscar acolher esses grupos sociais como seres humanos que são.
CI: A fúria das últimas catástrofes naturais é um indício de que o planeta terra está chegando ao seu limite? Até que ponto podemos nos considerar responsáveis por isso?
Andréa: Sem dúvida, a forma entusiástica em que se acolheu os princípios de racionalidade do “darwinismo social”, calcada pela égide capitalista, em prol de um progresso e desenvolvimento a todo custo, incidiu e tem incidido sobre os modos de vida, e especialmente, pela relação predatória do ser humano sobre a natureza.A falsa noção de que a natureza estaria, tão-somente, para pleno sentido da exploração humana, foi uma prerrogativa que fundamentou o “antropocentrismo”. Baseada em uma lógica em que o homem seria o centro do universo, a perspectiva antropocêntrica de explicação social e histórica da humanidade, propagou/propaga que tudo e todos devem estar a este serviço e dispor. Noção essa totalmente desprendida de um senso de responsabilidade para com o próximo e a natureza. O impacto dessas formas de exploração desmedidas e irracionais, fatalmente tem se voltado contra o próprio ser humano. Afinal como gerir, a longo prazo, uma lógica de exploração, à revelia,da natureza dado que os recursos naturais são limitados, e muitos, não-renováveis?! Essa torna-se uma reflexão mais que necessária.
CI: Diante de todo este quadro, é possível enxergar solução?
Andréa: Creio que não haja uma solução única possível, posto que não há como se remediar por completo,e de modo unânime, aquilo quehistoricamente foi, e ainda é, fortemente degradado, como a natureza. E socialmente, é difícil encontrar uma, ou “a”, solução porque se reproduz, veementemente, como um “mal necessário” em prol de um “bem maior ou coletivo” a poluição, a degradação dos meios e modos de vida da fauna, da flora e a má-qualidade de vida adquirida pelo ser humano. A sociedade comprou um discurso e prática de autodestruição de forma tão entusiástica que não se tem dado conta que tal “mal necessário” seria mesmo para benefício de quem? Visto que tal bem-estar, quando desfrutado, é altamente elitizado e, nem de longe, atende as expectativas e necessidades das maiorias dos grupos sociais. Por isso, acredito que uma, dentre as várias alternativas possíveis, estaria para se repensar as formas como temos estruturado socialmente as nossas relações humanas, quais sentidos atribuímos a ideia de “bem-estar” e, assim, pensarmos para além das conveniências e comodismos sociais e praticar o senso da empatia, alteridade para com todo o meio social e natural que nos circunda.