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A mutilação em nome da pureza

  • 13 de março de 2024
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  • Theillyson Lima
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“A promiscuidade é uma escolha, assim como a virgindade; não há relação com cortar minhas terminações nervosas, meu tecido genital sensível. Dê uma voz, pare com o ato”, protesta Babatunde Raimi em poema.

Paula Orling

Criança. Mutilação. Hemorragia. Morte. Estas palavras estão comumente relacionadas às crianças e mulheres da Somália. 98% da população feminina do país passou pela mutilação genital feminina (MGF). Alguns chamam o processo de circuncisão feminina, mas o termo é questionado por muitas organizações e ativistas. Isso porque soa como banal e a gravidade da situação é negligenciada por muitos. Hoje, a mutilação genital feminina afeta cerca de 200 milhões de meninas e mulheres, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU). Por isso, a organização já estabeleceu 6 de fevereiro como o Dia Internacional da Tolerância Zero para a Mutilação Genital Feminina.

A Somália é o país com a maior proporção de mulheres mutiladas, mas se engana quem pensa que toda a dor do procedimento respeita as fronteiras deste único país. Mais 29 países da África e do Oriente Médio consideram a prática comum. Mesmo que a prática esteja concentrada nestes lugares, regiões da América Latina, Europa Ocidental, América do Norte, Austrália e Nova Zelândia também têm registros da prática.

Existem consequências físicas da mutilação, que incluem hemorragia, transmissão de doenças pela higiene inadequada das lâminas usadas na prática e entupimento do canal vaginal nos períodos de menstruação. Além disso, existem quatro tipos de mutilação genital, sendo o terceiro tipo o pior, que se dá quando pelo “estreitamento do orifício vaginal através da criação de uma membrana selante, pelo corte e aposiçao dos pequenos lábios e / ou dos grandes lábios, com ou sem excisão do clítoris, (infibulaçao)”, segundo um manual de orientação das escolas sobre a temática e produzido pelo governo português. No caso do terceiro tipo, é necessária a abertura – normalmente sem a ajuda de um profissional de saúde – da vagina durante o parto e faz-se a “circuncisão” novamente após o nascimento do bebê. Este processo pode se repetir o mesmo número de vezes que a mulher tem um filho(a). Em casos extremos, até mesmo para que se tenha a relação sexual é necessária a reversão parcial da costura na genitália da mulher.

Além das consequências físicas, os resultados psicológicos podem ser considerados ainda mais graves. Estresse pós traumático, ansiedade, depressão e experiências de perda de memória são resultados comuns da MGF, de acordo com artigo publicado na revista eClinicalMedicine, parte do The Lancet Discovery Science.

A repercussão no país de mais mutiladas

Mesmo que a MGF seja uma prática comum na Somália, a cobertura midiática do país a este respeito é superficial e indiferente. No principal jornal do país, Horseed Media, a temática não aparece desde 2016, quando o país criou uma lei que proíbe a prática da mutilação.

À primeira vista, a ausência de conteúdos e mesmo a aparente indiferença do jornal podem parecer chocantes. Por outro lado, o efeito é facilmente entendível, mesmo que não justificável. A popularidade da MGF normaliza na mente da população esta prática. Sendo 98% das mulheres “circuncidadas”, jornalistas, esposas dos jornalistas, mães, filhas e irmãs deles também são. O crime está estampado diante de seus olhos, mas não enxergam a profundidade do perigo e da frequência da ocorrência.

Repercussão em Guiné Bissau

Muito diferente da Somália, Guiné Bissau se posiciona abertamente contra a MGF. No país, o portal de notícias mais acessado é o TV5 Monde, um jornal francês que alcança diversos países africanos e se posiciona contra a prática.

Ao se pesquisa “mutilation génitale féminine” (mutilação genital feminina em francês), mais de 2.700 textos aparecem de 2009, data da primeira publicação, a 2024. As temáticas variam entre propostas oficiais de governos africanos a respeito da MGF, ativismo feminista e impacto da religião nas ações populacionais.

Maria da Luz Batista é guineense e advoga contra a MGF. Ela explica que na sua realidade, a tradição muçulmana é a que mais incentiva a prática. É importante destacar que não existe nenhuma orientação institucional que sugira a mutilação. Contudo, a ideia de que esta é uma recomendação de Allá é comum nos discurso dos sacerdotes em frente ao público iletrado. Ela conta que existem líderes religiosos que levam mulheres e crianças – mesmo contra vontade – para a mata por semanas, onde praticam a MGF sem controle de anestesia e higiene. Lá, muitas delas perdem sua vida por hemorragia, infecção ou outras complicações no procedimento. O suicídio decorrente do sofrimento e destruição da auto-estima também é comum.

Mesmo assim, entre 2007 e 2013, o país sofreu um aumento de 11% do número inicial de mulheres mutiladas. Enquanto 44% da população do país sofria com a prática, 48% de todas as mulheres de Guiné Bissau passaram a sofrer, de acordo com o levantamento da United Nations Population Fund.

O organismo vivo da agressão 

O crime? A mutilação. A justificativa? A religião. O agressor? O religioso desinformado que pensa que a “circuncisão feminina” é critério de alguma religião. Um relatório da UNICEF realizado em 2013 destaca: “apesar do fato de que a MGF/C antecede o nascimento do Islã e do Cristianismo e não é exigida por escrituras religiosas, a crença de que é um requisito religioso contribui para a continuação da prática em diversos contextos”, em tradução livre.

Em Guiné, 32% das meninas e mulheres entre 15 e 49 anos entrevistadas acreditam que serem “circuncidadas” é necessário para sua fé de alguma forma. Além da ligação direta com a religião, 64% delas acreditam que devem passar pelo procedimento para serem socialmente aceitas. Esta relação não se limita à Guiné, mas está presente em outros países como Mauritânia, Eritreia, Chade e Mali. 

O destaque fica ainda mais triste quando a entrevista é com meninos e homens. Na Mauritânia, 41% deles pensam que as meninas e mulheres devem ser mutiladas como requisito da fé que professam. Entre outras categorias estudadas na pesquisa e citadas pelos entrevistados(as) como benefício da MGF estão a preservação da virgindade, melhor prospecção para o casamento, maior higiene e maior prazer para o homem durante a relação sexual.

A prática chamada de circuncisão feminina é popularmente associada às vertentes africanas do Islamismo. Esta ideia não é 100% correta. É interessante notar que a MGF é hábito presente em grupos de religiões diversas, incluindo Islamismo, Judaismo, Cristianismo e Animismo. No Chade, por exemplo, 55% das mulheres mutiladas são cristãs, ainda de acordo com a UNICEF.

A prática, além de repudiada pela ONU, também é condenada por recursos oficiais religiosos. No Egito, o país com maior número absoluto de mulheres mutiladas, a condenação mais autoritativa da MGF no Islã até hoje é a fatwa de 2007 (édito religioso). Esta regulamentação foi emitida pelo Conselho Supremo de Pesquisa Islâmica de Al-Azhar, “explicando que a MGF/C não tem base na Sharia (lei islâmica) ou em qualquer uma de suas disposições parciais, e que é uma ação pecaminosa que deve ser evitada”.

Impacto emocional

Com o objetivo de lutar contra a violência que é a MGF, várias campanhas foram lançadas ao redor do mundo. Os poemas são grandes inspirações para os leitores e ouvintes, que aprendem a se posicionar contra a crueldade. Babatunde Raimi protesta contra a prática:

“A promiscuidade é uma escolha

Assim como a virgindade

Não há relação;

Com cortar minhas terminações nervosas

Meu tecido genital sensível

Dê uma voz, pare com o ato

No meu mundo de êxtase

Eu tenho satisfação diminuída

Com baixa autoestima

Tudo graças a você

Ao se fazer de Deus

Em nome da tradição”

Muitos poemas retratam o sofrimento causado pela MGF. Vários deles foram incluídos em uma campanha do jornal britânico The Guardian contra a prática, realizada em 2014. Nela, dezenas de vídeos e poemas foram produzidos, os quais ajudam a compreender o impacto da MGF no emocional das crianças adolescentes e mulheres que passam por este sofrimento, os riscos físicos por elas sofridos. Uma das abordagens proposta foi a descrição do crime no Quênia, onde já existe uma lei proibindo a “circuncisão feminina” há muitos anos, mas a ação ainda é popular. Um dos vídeos traz a entrevista com um sacerdote mulçumano que mais uma vez ressalta que a MGF é crime para sua religião, que deve ser combatida e dissociada a um pensamento religioso. Ele conta que é contra a prática e apoia o ativismo contra esta.

Com documentários curta-metragem, o The Guardian difundiu por todo o mundo as histórias de mulheres que passaram pela MGF. Também detalhou os horrores pelos quais as pessoas mutiladas passam e propõe a intervenção mais forte dos governos locais e internacionais na extinção da considerada circuncisão feminina. Esta não é a primeira nem a última vez que o The Guardian se envolve com a temática. O jornal britânico é exemplo em envolvimento com pautas sociais internacionais e se posiciona abertamente contra a MGF em diversos produtos jornalísticos de suas história.

Além do The Guardian, universidades e ONGs ao redor do mundo se esforçam para conscientizar a população mundial contra esta crueldade e a arte, seja em músicas, poemas ou artes plásticas, é uma ferramenta essencial na luta contra a mutilação genital feminina.

 A desculpa por trás da agressão

A pureza é requisito de muitas religiões ao redor do mundo. Para as três religiões provindas de Abraão – Judaísmo, Islamismo e Cristianismo – a pureza é representação da fé requisito para aceitação religiosa. Mas até onde vai o direito da religião de interferir nas decisões pessoais?

Engana-se quem pensa que a América Latina está distante desta realidade. É verdade que a MGF não é comum neste continente, mas a razão que seus praticantes usam para justificá-la está. Com uma roupagem diferente, uma construção bíblica detalhada e uma tradição de milênios, a cristandade latina alimenta o conceito de pureza a todo custo – e o de punição infernal para o descumprimento da regra.

De forma satírica, a ideia é discutida no seriado Jane, the Virgin. A protagonista, católica e de origem venezuelana, é educada por sua avó para nunca ter relações sexuais antes do casamento. Para garantir que a mensagem seria fixada na mente de Jane por toda a vida, sua abuela pede que ela amasse uma rosa branca e depois a conserte. Vendo ser impossível, Jane é ensinada que esta é uma metáfora para sua virgindade. Uma vez “estragada”, não se pode voltar atrás.

A ideia de inferno e “decisão pelo pecado” é fortemente destacada na série. Esta é a única consequência cabível para os transgressores na ideologia da família de Jane. O terrorismo psicológico feito com milhares (senão milhões) de meninas e mulheres na América Latina em nome da “pureza” reforça o desconforto com o próprio corpo. 

Este é um dos motivos pelos quais mulheres têm taxas de orgasmo menores que homens. Em uma amostra de 50 mil pessoas, um estudo mostrou que, entre os homens heterossexuais, 95% passavam pelo orgasmo em relações íntimas, enquanto apenas 65% das mulheres heterossexuais diziam o mesmo. Quando a MGF entra em cena, a porcentagem é nula.

Partindo do pressuposto de que o argumento religioso é usado para impor a MGF, também é a religião a capaz de desfazer o mal causado. De acordo com o estudo da UNICEF, o processo de mudança pode ser mais fácil se as comunidades praticantes forem expostas a comunidades não praticantes com as quais tenham alguma afinidade, como uma religião compartilhada. “Se não houver essa exposição, a comunidade praticante pode até assumir que a mutilação genital feminina (MGF) é universal e não ter motivo para questioná-la”, argumenta.

Neste sentido, a MGF leva ao extremo o que a religiosidade tradicional latina já faz. O ato cruel da chamada circuncisão feminina é uma dimensão física do que se faz no psicológico de cristãs ameaçadas nas Américas. 

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