Da representatividade à contradição: quando o discurso não bate com a realidade
- 6 de novembro de 2024
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- Theillyson Lima
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De ícone da positividade corporal a alvo de acusações de gordofobia e abuso, o caso de Lizzo escancarou as contradições entre sua imagem pública e os bastidores.
Davi Sousa
Melissa Viviane Jefferson, conhecida mundialmente como Lizzo, surgiu como um símbolo da representatividade na música pop e hip-hop. Ao longo dos anos, a artista construiu uma carreira baseada em mensagens de auto aceitação, diversidade e amor-próprio, com letras que ecoavam a resistência aos padrões impostos pela sociedade. Em hits como “Truth Hurts” e “Good as Hell”, ela não apenas encantava com seu talento, mas também inspirava pessoas ao redor do mundo com uma mensagem clara, ame a si mesmo como você é. Mas o que acontece quando a pessoa que promove essa mensagem é acusada de praticar o oposto?
Em 2023, Lizzo foi alvo de acusações graves que chocaram a indústria e seu público, que vão desde abuso de poder, comportamento tóxico e, ironicamente, gordofobia. Essas denúncias vieram à tona a partir de ex-integrantes de sua equipe, criando uma quebra na confiança do público com a artista e levantando a pergunta: até que ponto Lizzo é realmente coerente com os ideais que sempre pregou?
Quando o discurso não bate com a realidade
Lizzo sempre foi celebrada por desafiar os padrões estabelecidos pela sociedade do que é “normal”, sendo uma mulher negra e plus-size em uma indústria que, historicamente, promove a magreza e um padrão eurocêntrico de beleza. Ela se destacou não só pela sua música, mas por ser uma defensora vocal da positividade corporal, incentivando as pessoas a se aceitarem como são. Isso faz com que as acusações de gordofobia pareçam ainda mais contraditórias, marcando uma transição de mocinha a vilã aos olhos do público.
A questão que surge aqui é sobre a autenticidade. Como uma pessoa que constrói uma carreira em cima da inclusão e do respeito à diversidade pode, nos bastidores, estar associada a práticas tão prejudiciais quanto aquelas que ela denuncia? Este tipo de contraste entre a imagem pública e o comportamento privado não só afeta a carreira de Lizzo, mas também enfraquece a confiança do público em figuras públicas que se vendem como representantes de movimentos sociais.
Além disso, há uma questão moral: devemos separar a arte do artista? Lizzo ainda é capaz de ser uma voz relevante para o movimento de aceitação corporal? Esses questionamentos sempre são levados à tona nas redes sociais e na mídia, onde a queda de ídolos é tratada de maneira polarizada.
Cautela ou puro sensacionalismo?
Quando as alegações vieram à tona, a mídia internacional rapidamente cobriu o caso, mas de maneiras bastante distintas. Em veículos de prestígio como o The New York Times e The Guardian, a abordagem foi cuidadosa, buscando contextualizar as acusações sem prejulgar. Esses veículos exploraram o impacto potencial na carreira de Lizzo, mas também destacaram que, até aquele momento, as alegações ainda não haviam sido investigadas a fundo. A cautela era o tom principal, com ênfase no respeito ao processo judicial.
Por outro lado, veículos mais sensacionalistas,como o TMZ e o Daily Mail, se concentraram nos detalhes mais escandalosos, pintando Lizzo como uma vilã sem se aprofundar nas implicações sociais ou culturais que esse caso carrega. Essa abordagem mais rasa reflete o padrão típico dessas publicações, que priorizam cliques e controvérsia acima de qualquer reflexão mais crítica.
No Brasil, a cobertura foi mais modesta. Sites como O Globo e o UOL trataram o caso de forma objetiva, mas sem grandes aprofundamentos. Já em páginas como Hugo Gloss e Metrópoles, o enfoque estava nas reações das redes sociais e no impacto imediato sobre a imagem pública de Lizzo. Nesse sentido, houve uma predominância de matérias focadas em como o público reagia e menos sobre o contexto mais amplo ou sobre o papel da mídia na formação dessas opiniões.
Mas será que a mídia está sendo justa em sua cobertura? Ao focar apenas nos aspectos sensacionalistas, os veículos não estariam deixando de lado a responsabilidade de discutir temas mais profundos, como as pressões que figuras públicas enfrentam e o impacto dessas controvérsias no próprio movimento de aceitação corporal?
Redes sociais o tribunal público
Não é segredo que as redes sociais são, cada vez mais, um tribunal online onde celebridades são julgadas e condenadas. No caso de Lizzo, a reação foi imediata e intensa. Hashtags explodiram no Twitter, com muitos fãs expressando sua decepção e raiva. A velocidade com que Lizzo foi “cancelada” é um reflexo direto da cultura digital em que vivemos, onde a queda de ídolos ocorre de forma quase instantânea.
Entretanto, essa resposta imediata levanta um ponto importante, o público está realmente interessado em buscar a verdade ou apenas quer ser o primeiro a apontar o dedo? O “cancelamento” nas redes sociais muitas vezes acontece sem uma análise aprofundada dos fatos, e no caso de Lizzo, muitos já fizeram um pré-julgamento antes que as acusações fossem completamente investigadas. Isso não significa que as alegações não devam ser levadas a sério, elas devem, mas é necessário um equilíbrio entre justiça e a necessidade frenética de julgar.
Uma trajetória manchada?
Seja qual for o desfecho dessas acusações, o impacto sobre a carreira e a imagem de Lizzo já é visível. Ela, que se posicionava como uma líder do movimento de positividade corporal, viu sua base de fãs e seu prestígio abalados. Sua trajetória, que até então era vista como uma história de superação e empoderamento, agora está manchada por controvérsias que colocam em xeque sua integridade.
A grande questão que fica é como ela pode se reerguer após isso? A reconciliação entre a Lizzo artista e o público pode ser complexa, mas não impossível. Celebridades que passam por escândalos dessa magnitude muitas vezes têm duas opções, se afastar ou usar a controvérsia como um ponto de reflexão para se redimir. Resta saber qual caminho Lizzo irá trilhar.
Além disso, essas alegações abrem uma discussão maior sobre o quanto as celebridades são vistas como porta-vozes de causas sociais. Até que ponto é justo colocarmos figuras públicas em pedestais de responsabilidade social? Lizzo, como muitos outros, pode ter sido sufocada pelas expectativas que ela mesma ajudou a criar. Isso não justifica os abusos relatados, mas convida a refletir sobre o impacto da fama e da pressão pública.
O legado de Lizzo está perdido?
Além das controvérsias envolvendo sua carreira, é importante observar que Lizzo não lança novas músicas desde seu último álbum, Special, em 2022. O disco foi aclamado pela crítica e trouxe hits que reforçaram sua mensagem de amor-próprio e aceitação, mas, desde então, sua produção musical estagnou. Em março de 2024, Lizzo usou suas redes sociais para desabafar sobre as acusações de assédio.
Lizzo expressou profunda frustração e cansaço ao ser alvo constante de críticas, especialmente sobre sua aparência e caráter. “Estou ficando cansada de aguentar ser maltratada por todo mundo na minha vida e na internet. Tudo o que quero fazer é música, fazer as pessoas felizes e ajudar a tornar o mundo um lugar um pouquinho melhor do que era antes. Mas estou começando a sentir que o mundo não me quer nele”, desabafou a cantora.
As alegações resultaram em grandes impactos em sua carreira, incluindo a exclusão de Lizzo da lista de possíveis artistas para o intervalo do Super Bowl. Em seu posicionamento, ela negou veementemente as acusações, afirmando que as denúncias vinham de ex-funcionárias demitidas por mau comportamento durante sua turnê.
Será que Lizzo conseguirá se recuperar e reconciliar seu legado com as acusações que enfrenta? Somente o tempo e a forma como ela responderá a essa crise poderão dizer. Por enquanto, o que fica claro é que o público, a mídia e as redes sociais continuarão a dissecar cada passo de sua jornada.