A complexidade de “Uma Mente Brilhante”
- 3 de abril de 2024
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- Theillyson Lima
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Filme campeão de bilheteria aborda a esquizofrenia de forma simplista e unilateral.
Paula Orling
Um estudante esquisito que não tem amigos até um colega de quarto aparecer; um professor recrutado pela inteligência americana para recodificar mensagens secretas russas; um doutor solitário que encontra uma amizade verdadeira na sobrinha criança de seu amigo… todos esses são retratos do fascinante John Nash, cuja história é narrada no filme “Uma Mente Brilhante” (A Beautiful Mind). O detalhe que convence a audiência de que o filme vai além de uma biografia é o momento em que se esclarece que nenhuma dessas pessoas da vida de Nash é real. Todas estas são projeções de sua mente com esquizofrenia.
Inspirado na biografia do ganhador do Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel John Forbes Nash Jr, o longa-metragem ganhou uma grande repercussão dentro da pauta de deficiências mentais. A credibilidade do filme veio principalmente porque é baseado na história real de um esquizofrênico e, por isso, assume-se que seja fiel na descrição da condição.
Até 2020, a esquizofrenia afeta cerca de 21 milhões de pessoas em todo o mundo, de acordo com o Senado Federal. Este dado é crescente e, desta forma, a inclusão da temática em produtos audiovisuais é imprescindível para que haja uma representação social mais abrangente.
“Uma Mente Brilhante” é um filme que oferece uma representação complexa e multifacetada da deficiência, levantando pontos sobre a esquizofrenia que são comumente ignorados pelos produtores. Embora o filme tenha sido amplamente elogiado por seu objetivo de inclusão, sua narrativa cativante e performances excepcionais, também levanta críticas sobre a forma como aborda a deficiência mental.
Um ponto a se questionar sobre o filme é a maneira como ele retrata a esquizofrenia como uma condição exclusivamente negativa. Embora seja verdade que a esquizofrenia possa causar desafios sérios e dificuldades para aqueles que a vivenciam, o filme retrata a condição de forma extremamente estigmatizada, sem explorar adequadamente a diversidade de experiências dentro da comunidade esquizofrênica. Isso pode reforçar estereótipos prejudiciais e simplistas sobre a doença mental.
Visão unilateral
O longa se concentra na perspectiva de John Nash, o personagem principal, em detrimento de outras vozes dentro da narrativa. Neste sentido, limita a compreensão das pessoas que convivem com o esquizofrênico sobre a experiência da esquizofrenia e perpetua uma visão unidimensional da deficiência mental.
Neste sentido, o filme reforça normas sociais e as ideologias dominantes sobre a doença mental. A este respeito, o filósofo francês Michael Foucault critica das instituições sociais e do poder, e sua obra muitas vezes questiona as narrativas dominantes que moldam nossa compreensão das experiências individuais e coletivas.
Caso Foucault tivesse a oportunidade de assistir a Uma Mente Brilhante, talvez contestasse a representação da esquizofrenia. De acordo com suas ideias, o filme reproduz e reforça as normas sociais e as ideologias dominantes sobre a deficiência. Ele argumentaria que as representações culturais da esquizofrenia são construídas dentro de um contexto histórico e social específicos, e que essas ideias sobre a condição podem servir para marginalizar e estigmatizar as pessoas que vivenciam a condição.
Neste sentido, tudo que se sabe sobre a esquizofrenia em “Uma Mente Brilhante” vem da imaginação de Nash. A visão exterior é apenas ver o professor como maluco e buscar a cura. Pouco sobre a adaptabilidade do esquizofrênico é abordada no longa. A narrativa unilateral reflete uma dinâmica de poder na qual as vozes e experiências das pessoas com esquizofrenia são silenciadas ou marginalizadas em favor da narrativa dominante sobre a questão, de que a esquizofrenia é loucura. Esta ideia é reforçada com os tratamentos intensivos comuns no período de Nash e expostos no filme.
Apesar da abordagem do filme sobre a deficiência ser problemática, é necessário admitir que esta é fiel à visão limitada que se tinha sobre a esquizofrenia no século 20.
A esquizofrenia longe do sensacionalismo de Uma Mente Brilhante
Para um filme que se propõe a revelar a mente de um esquizofrênico, “Uma Mente Brilhante” simplifica ao extremo a complexidade da deficiência. Os sintomas da esquizofrenia de John Nash nas cenas são frequentemente exagerados para efeitos dramáticos. Embora alucinações e paranoia sejam características comuns da esquizofrenia, o filme não captura a complexidade e a variabilidade dos sintomas que os indivíduos com esquizofrenia podem experimentar.
Neste sentido, Breno Fiuza Cruz, do Departamento de Saúde Mental da Universidade Federal de Minas Gerais, aponta que existe uma gama de possibilidades de vivências para pessoas esquizofrênicas. Ele explica que raramente, senão nunca, as alucinações são constantes, fixas e repetidas. Esta situação desmistifica parte da fantasia produzida pelo longa, que aponta o protagonista com os mesmos amigos imaginários por décadas.
Abordagem terapêutica
No filme, a abordagem terapêutica para a esquizofrenia de Nash é simplista e focada em medicamentos antipsicóticos. Embora esses medicamentos sejam uma parte importante do tratamento para muitas pessoas com esquizofrenia, especialmente no século passado, a terapia psicológica e o apoio social também desempenham papeis fundamentais no manejo da condição na vida real.
Ainda na ideia do tratamento, o filme conclui sua trajetória com a superação de Nash em relação à esquizofrenia. O professor passa a ser capaz de diferenciar a realidade da alucinação e supera as dificuldades causadas pelos remédios com a abolição deles de sua vida. Apesar desta solução ser viável para esquizofrênicos, não é o tratamento aconselhado pelos médicos.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), “uma variedade de opções de cuidados eficazes para pessoas com esquizofrenia existem, e estas incluem medicação, psicoeducação, intervenções familiares, terapia cognitivo-comportamental e reabilitação psicossocial (por exemplo, treinamento de habilidades de vida).” Neste sentido, apenas força de vontade não é o bastante para lidar com a deficiência psíquica.
Sendo um filme que arrecadou mais de 300 milhões de dólares em bilheteria mundialmente, “Uma Mente Brilhante” alcança pessoas de todo o planeta, muitas delas que lidam com a esquizofrenia. É possível que, a partir da conclusão do filme, as pessoas tenham a falsa ideia de que a deficiência não exige acompanhamento profissional para que a pessoa aprenda a lidar com ela.
Democratização
Segundo Cruz, no entanto, a democratização do acesso ao tratamento ainda é limitada. “Apesar de ser um transtorno mental tratável, mais de 50% das pessoas com esquizofrenia não têm acesso ao tratamento adequado e 90% das pessoas portadoras do transtorno não tratadas vivem em países em desenvolvimento”, elenca. Neste sentido, a proposta do filme é animadora para as milhares de pessoas que buscam incentivos para combater a deficiência.
Diante do exposto, “Uma Mente Brilhante” oferece uma representação detalhada da vida de John Nash e sua luta contra a esquizofrenia, mas levanta questionamentos sobre a simplificação e estigmatização da deficiência. Ao concentrar-se na perspectiva de Nash, o longa-metragem limita a compreensão do público sobre a complexidade da esquizofrenia. Assim, ignora outras perspectivas dentro da narrativa e perpetua uma visão unidimensional da condição.
Além disso, ao minimizar o acompanhamento profissional para a esquizofrenia e sugerir uma superação baseada apenas no autotratamento, o filme transmite uma mensagem equivocada sobre o tratamento adequado. Mesmo contribuindo para aumentar a conscientização sobre a esquizofrenia, reconhece-se que há limitações no filme. Ainda existe a necessidade promover uma representação mais precisa e sensível das experiências das pessoas com esquizofrenia para combater o estigma e promover uma compreensão empática da condição.