“Não há como o humor banalizar a política de um país”
- 20 de maio de 2019
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- Thamires Mattos
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Amanda Ferelli
Em tempos de polarização política, a comédia usa a liberdade de expressão para evidenciar questões e acontecimentos políticos com ironia e humor questionador. É possível considerar o humor como uma ferramenta de formação de opinião social e crítica? Para discutir sobre o humor na política, entrevistamos Patrícia Lima, que é Doutoranda e Mestre em Comunicação e Cultura da Mídia pela Universidade Paulista (Unip). Em seu mestrado, Patrícia analisou o humor e a política no grupo Porta dos Fundos durante a crise do governo da ex-presidente Dilma.
Amanda Ferelli: Por que fazer humor sobre política? Ela é tida como um assunto tão sério.
Patrícia Lima: O humor é um processo que analisa a sociedade e seus componentes pela ótica crítica. Independente do assunto, o humor busca olhar de maneira “crua” os fatos, e, por isso, quando aplicado à política, se torna necessário. O pensamento que política e humor não devem se misturar não é novo. No século XVI na França, por exemplo, ele chegou a ser proibido em ambientes governamentais. Era visto como um empecilho à boa discussão. A verdade era que, ao promover piadas sobre opositores, os políticos mostravam verdades que não deveriam ser ditas. É esse o papel do humor político: promover discussão sobre os itens que podem afetar a todos. A seriedade da política pode inibir olhares mais profundos. O humor possibilita isso.
AF: Há como definir o humor político brasileiro?
PL:O humor brasileiro possui uma característica muito própria: a aproximação das cantigas de escárnio e maldizer, comuns em Portugal nos séculos XII a XIV. Enquanto em países como Estados Unidos e França o humor se apropria de paródias e sátiras mais elaboradas, aqui o popularesco é mais comum. Os personagens brasileiros precisam falar a linguagem do público mais simples. Há uma corrente que busca a modernização, como os grupos de stand up, mas os personagens simples e debochados ainda dominam nosso humor.
AF: Vários humoristas brasileiros são jornalistas de formação. Você acredita que a essas titulações influenciam o estilo de humor político brasileiro?
PL: Não diretamente. A corrente de artistas tradicionais em nada se influenciou pela sua formação acadêmica. Então, não podemos fazer essa afirmação. No entanto, novos nomes como Marcelo Adnet já possuem esse perfil. Aí sim podemos dizer que há influência, visto que o humor advindo desses profissionais é mais elaborado, crítico e objetivo. No entanto, o espaço para esse humor ainda é pequeno. Ele é localizado em veículos mais independentes e plataformas mais receptivas, como a internet. A TV ainda está aprendendo a lidar com este humor. Adnet é um exemplo. Enquanto seu programa é temporário e exibido após às 22h numa terça-feira, a Escolinha do professor Raimundo e seu humor caricato é exibida aos domingos no horário do almoço. A projeção para esse humor complexo é difícil, mas não para de crescer.
AF: O humor na política, seja este veiculado por vídeos, sites, entre outros, consegue informar e conscientizar mais pessoas do que um portal de notícias?
PL: Não que haja uma conscientização maior, mas, em muitas ocasiões o humor levará ao público bastidores que o jornalismo não pode ou não quer mostrar. Sabemos que há uma linha editorial que o veículo jornalístico segue e isso possibilita uma visão nem sempre totalmente contemplativa do evento político. O humor, em contrapartida, irá procurar escancarar esses fatos. O ideal seria que o público observasse ambos: jornalismo e humor; mas podemos dizer que, seguindo o humor, ele já consegue ver pontos e discutir alguns fatos.
AF: Pode-se dizer que, antes, jornalistas eram responsáveis pela formação de opiniões políticas. Entretanto, nas últimas eleições, vimos o humor tomar as rédeas da política brasileira. Você acredita que o humor tem influencia na formação política das pessoas?
PL: A formação política é algo muito complexo. Passa por questões de aprendizagem de história, geografia, ciências sociais e relações humanas. Saber política é entender vários aspectos e conectá-los de forma complementar. Uma boa opinião política está ligada a uma boa educação, e nisso, o Brasil fica devendo. Visto que temos uma sociedade midiática, que pulou diretamente da oralidade para o audiovisual, sem passar pela leitura, o jornalismo cumpriu esse papel de formador de opinião por anos. O que aconteceu nas últimas eleições é que tivemos um movimento que buscava desmoralizar o jornalismo, enquanto outro grupo tentava usar o humor para formação de opinião. Historicamente, o humor sempre será oposição. Autores chegam a chamar de “mecanismo de combate a ordem vigente”. Ou seja, ele nunca buscará influenciar ninguém. Ele buscará questionar a todos. Pensando que tivemos eleições polarizadas e muito conflituosas, o humor apareceu como combatente que escolheu um lado. Isso é novo. Em minha pesquisa de doutorado tenho buscado entender exatamente o que mudou. O que já podemos afirmar é que, enquanto historicamente o humor era concebido por um cidadão ou grupo, geralmente ligado ao artístico, e replicado por várias vertentes sociais, nas eleições de 2018 ele foi concebido e replicado no mesmo ambiente e pelas mesmas pessoas. Isso confundiu o receptor, que passou a entender essas criações como influência. Uma recuperação da imagem do jornalismo é essencial para a retomada do humor na sua forma original.
AF: Em 2016, portais como O Estadão e o Sensacionalista tinham o mesmo número de seguidores nas redes sociais. Inclusive, o Sensacionalista contava com 10 milhões de visitantes por mês e era considerado um dos maiores canais de notícia do país. Esse fator seria um reflexo da sociedade brasileira?
PL: É um reflexo, na verdade, de um movimento que se iniciou em junho de 2013, com as manifestações populares. Na ocasião, enquanto a mídia tradicional não sabia exatamente como lidar com as informações e com os eventos que se apresentavam, o público, de dentro das passeatas, filmava, fotografava e contava o que ocorria. As redes sociais passaram a ser canal de informação e documentação. Visto isso, grupos começaram a se organizar para inflamar esse discurso e desmoralizar a mídia. Mesmo pessoas que não negaram completamente a informação advinda dos meios tradicionais, começaram a seguir outras formas de informação. O que ocorre com o Sensacionalista é que ele apresenta a crítica de forma organizada, quase que como um jornalismo. É inteligente, inovador e combina com a plataforma da internet. Responde a esse movimento de negação da mídia ao mesmo tempo que contempla aqueles que gostam de perspicácia no humor. O Estadão apenas sentiu esse movimento de negação, enquanto o Sensacionalista surfou na onda e ganhou espaço.
AF: Tendo em vista sua análise, é possível afirmar que o humor pode enfraquecer ou fortalecer a carreira de um político?
PL: Um dos grandes autores de humor, Henri Bergson, conta que, para fazer sentido, o humor precisa encontrar um ponto fraco no satirizado e ampliar ao máximo, dando sensação de grandeza a quem faz a piada e a quem se identifica com ela. No humor político, isso serve para defender o interesse comum em vista do interesse de poucos. Na verdade, sofrerá a piada quem estiver detendo o poder naquele momento. Na ocasião, foi Dilma Rousseff. Mas já foi Lula, FHC e Collor. Não importa quem esteja no poder, o humor nunca o perdoará. O Porta dos Fundos apenas seguiu essa vertente. O período da minha análise levou em consideração o governo Dilma desde as manifestações de junho de 2013 até o impeachment. Havia dois movimentos muito fortes naquele momento: os que não compactuavam com a política petista, representada por Dilma, e os que buscavam manter a presidente no poder. Foi possível observar duas vertentes dentro do grupo. Enquanto Gregório Duvivier defendia a conclusão do mandato, Antonio Tabet, o Kibe, apoiava a saída. O que mais vale destacar é que os esquetes do grupo no período davam voz às duas opiniões e apontavam forças e fraquezas dos dois lados. Bastidores eram expostos e questões complexas discutidas abertamente. O Porta dos Fundos usou e abusou da sua liberdade de expressão. Ganhou e perdeu seguidores por isso, mas nunca deixou de seguir a premissa de que o bom humor pensa e busca o melhor para todos.
AF: Ao levar em consideração sua análise da crise política da ex-presidente Dilma nos produtos do Porta dos Fundos e os últimas acontecimentos na Câmara dos Deputados, acredita que o humor pode banalizar a política de um país? Um exemplo foi o episódio em que o deputado Zeca Dirceu chamou o ministro Paulo Guedes de ’tchutchuca’.
PL: O episódio de Zeca Dirceu me pareceu muito mais uma tentativa de buzz midiático do que o uso do humor na sua essência. Na ocasião, o reflexo da fala do deputado o colocou como referência. A oposição tem buscado isso, uma referência para seguir. A quantidade de memes gerada pela fala de Zeca mostrou que isso funciona, mas não pode ser padrão.
A piada encaixou bem pois demonstrou a desorganização e inexperiência do governo atual. O humor usará esses processos. Não há como o humor banalizar a política de um país. O ambiente político é complexo e dificilmente será afetado em sua totalidade pelo humor. O que vemos é que ao demostrar o cenário e sua realidade frágil, fica difícil não serem colocados no mesmo ambiente. O que é preciso é saber usá-lo para não chegarmos ao nível de entendimento da França do século XVI. Melhor deixar para os humoristas.