Desarmamento é questão estratégica
- 18 de abril de 2019
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- Thamires Mattos
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Gabriel Buss
O desarmamento causa várias discussões e discursos. Grande parte dos cidadãos não entendem muito bem as leis nacionais, assim como seus direitos e deveres em relação ao porte de armas no país. Para esclarecer tais dúvidas, entrevistamos Natália Polachi, que é coordenadora de projetos do Instituto da Paz. O objetivo do Instituto é analisar a segurança pública em um país com altos índices de violência e criminalidade.
Gabriel Buss: Natália, percebi que o Instituto da Paz analisa bastante os dados da segurança pública do Brasil. O que essas pesquisas nos contam sobre o uso de armas no país?
Natália Polachi: Acho interessante comentar que uma das primeiras questões que a gente identifica é que não há dados públicos sobre armas apreendidas no país. Portanto, temos uma grande dificuldade de acesso a esses dados. Os dados sobre armas registradas no país, por exemplo, conseguimos com a Polícia Federal e o Exército, mas são muito rasos. Não conseguimos o perfil das pessoas que registraram essas armas em relação à idade, profissão, gênero. Não se consegue detalhar por cidade. Esses dados que não constam seriam muito importantes para realizarmos pesquisas mais precisas.
GB: Essa falta de controle por parte do governo através da PF e do Exército já vem de muito tempo?
NP: Sim, existe uma deficiência crônica tanto de acesso a dados quanto de falta de investigação. Então, é “engraçado”: a população cobra muito mais a polícia militar, que é obviamente a polícia que está nas ruas, porém esquece que, quando uma arma é apreendida, uma investigação deveria ser feita para saber de onde ela veio. Nos poucos casos em que isso foi feito, observa-se que 40% das armas apreendidas tinham um registro legal. Portanto, são armas do famoso “cidadão de bem“ que foram usadas em crimes, seja pelo próprio proprietário ou porque ela foi desviada/roubada.
Quando uma investigação ocorre, há grande chance de se encontrar um responsável e esclarecer um crime. Mas, na maioria dos casos, não é feita nenhuma investigação, a arma é aprendida, encaminhada para a justiça e é destruída.
GB: Você acredita que, por parte do governo, não há interesse em saber de onde essas armas vêm?
NP: Penso que ainda não se entendeu que essa é uma questão estratégica, porque obviamente sempre há falta de recursos. Digo estratégica pois falamos de um país onde milhares de pessoas morrem por armas de fogo. A arma de fogo não impacta só em homicídios; ela impacta em roubo, sensação de insegurança, crimes sexuais, entre outros. Então, retirar armas de circulação é muito estratégico para diminuir toda criminalidade e violência, e isso não é entendido como uma questão estratégica, e, por isso, não está na lista de prioridades de investimento das policias.
GB: Em janeiro, o Presidente da República, Jair Bolsonaro, facilitou as regras para a posse de arma de fogo. Após as análises de dados, qual a visão do Instituto da Paz sobre o impacto dessa decisão?
NP: Há um potencial de impacto muito negativo. Afinal, na verdade, isso alimenta uma ilusão de que um cidadão comum sem um treinamento adequado, pego de surpresa e em inferioridade numérica iria conseguir reagir a um crime. Na prática, tanto na pesquisa com civis quanto no acompanhamento de policiais – que possuem um treinamento muito diferente do que qualquer civil conseguiria acessar –, nenhum consegue reagir de forma eficiente. Então, nessa tentativa de reação, a maior probabilidade é o agravamento do crime. O que seria um roubo, que é um crime grave, acaba se tornando um latrocínio; um tiroteio – expondo outras pessoas não armadas a esse perigo. E isso impacta não só para a pessoa que decide ter arma, mas sim todos ao seu redor, desde moradores da casa até clientes de estabelecimentos. Por exemplo: você vai na pizzaria no fim de semana com sua família e o dono resolve que ele quer reagir a uma situação de assalto. Você está ali no meio do tiroteio. Assim sendo, esse discurso de que se você não quer é só você não comprar, e, assim, não será afetado por isso, é muito falho.
GB: Hoje existe um projeto de lei pronto para ser votado que derruba o “Estatuto do Desarmamento”. Ele seria um reforço do plebiscito de 2005, quando a maior parte dos brasileiros votou a favor do mercado de armas?
NP: Não. Essa é uma confusão bem frequente. A questão do referendo foi o seguinte: “o comércio de armas a civis deve ser totalmente proibido? Caso exista, haverá venda para civis, mas dentro de certos requisitos”. A população pode votar sim para a primeira opção ou não para a segunda. A maioria votante decidiu não proibir totalmente, portanto, desde 2005, seguindo a decisão do referendo, esse comércio está aberto para civis dentro de certas regras. Nunca esteve em pauta a venda irrestrita de armas. Os dados oficiais fornecidos sobre venda de armas pelo Governo Federal mostram que mais de 800 mil armas já foram vendidas legalmente depois do referendo. Então, esse mercado de compra de armas existe sim. É um mercado ativo; que funciona, e, inclusive, responde a demanda, que é crescente nos últimos anos. Não é uma coisa hermética à demanda social.
O que entendemos é que essa justificativa é bastante “furada”, e, na verdade, até um pouco desonesta. Ela contraria justamente o que foi a consulta do referendo, e esse projeto de lei tem uma série de outras exposições muito preocupantes. Por exemplo, que pessoas que estão sendo investigadas por crimes violentos e condenados por crimes não culposos possam comprar armas. É um projeto bem mais danoso do que o decreto que foi implementado agora.
GB: Como, então, conscientizar a população sobre o uso das armas?
NP: Acredito que o mais importante é reforçar que a posse de armas não é proibida, ao contrário do que muitos grupos propagam. Ela segue critérios, e cada um foi pensado segundo a realidade brasileira. Temos como exemplo o limite de idade. É permitido comprar armas a partir dos 25 anos. Isso ocorre porque jovens de até 24 anos no Brasil são as pessoas que mais se envolvem em eventos violentos. O fato de que as pessoas não tenham antecedentes criminais parece tão óbvio, mas o projeto que você mencionou (Fim do Estatuto do Desarmamento) quer derrubar essa questão. Nesse cenário, uma pessoa denunciada por violência doméstica poderia no outro dia comprar uma arma de fogo legalmente.
Os critérios que dizem respeito à residência fixa do portador, alguma comprovação de renda e sua habilidade de passar em um teste são bem relevantes, mas o decreto de janeiro estendeu a duração do teste psicológico para 10 anos, o que é completamente inadequado. Nenhum laudo psicológico tem duração de dez anos. Já no teste de aptidão, é exigido que a pessoa acerte um alvo parado em uma distância curta. O mínimo são seis em dez disparos. Uma coisa extremamente simples só para ver se ela consegue minimamente manejar uma arma. A validade da prova também foi estendida para 10 anos.
As pessoas acham que vão conseguir reagir no momento do crime, mas os dados mostram que não é bem assim. As pessoas veem e acham que vão ser ‘James Bond’ ou que é igual videogame e não é. E no fim elas vão acabar agravando o crime, aumentando as chances de serem mortas e/ou de vitimar a família que está ao redor.
Todo mundo tem acesso a uma arma que está dentro de casa. Então, percebemos também que muitos estudos no exterior expõe o aumento de casos de proprietários de armas de fogo ou de alguém na casa com problemas psicológicos. Às vezes, até um episódio pontual de demissão pode aumentar a possibilidade de suicídio. Cresce o acidente com crianças, aumenta a violência entre familiares. Então, possuir arma dentro de casa é algo que afeta toda a dinâmica familiar.
GB: Uma fala polêmica na época da tragédia de Suzano feita pelo senador do PSL Major Olímpio era de que os danos poderiam ter sido menores ou até evitados se existissem professores armados na escola. Como você avalia essa colocação?
NP: De novo, isso alimenta a ilusão de que é possível reagir de forma eficaz estando armado. Nessa situação, se houvesse algum(a) professor(a) armado(a), é muito provável que os alunos se dirigissem diretamente a ele(a). Ou essa pessoa está com a arma na cintura pronta para uso ou também não teria tempo sequer de acessar essa arma guardada, trancada num armário. Outra probabilidade é de que os alunos tivessem achado a arma e chegassem com ela apontada atrás do docente. Ou seja: o cidadão armado vai escalar a gravidade do crime, porque o ladrão não vai chegar e pedir suas coisas. Ele vai atirar primeiro e depois perguntar. Então, isso é muito ilusório. Sem falar que isso aumenta a chance de desvio dessas armas. Além do crime ser mais grave, a o criminoso chegou com uma arma e vai sair com duas. O mercado ilegal se beneficiaria muito dessa proliferação.