El País, sorry, mas precisamos falar de Cuba
- 30 de outubro de 2017
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- Thamires Mattos
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Furação Irma devastou Bahamas, Cuba, Haiti, Porto Rico, Ilhas Virgens americanas e Britânicas, Saint Barth, Saint Martin e Anguilla, Barbuda, mas todos os holofotes do El País parecem ter se voltado para a Flórida
Luciana Ferreira
“Depois da tempestade vem a bonança”. Esse famoso ditado popular parece se adequar a quase todo tipo de tempestade. Mas se tratando de desastres ambientais, a bonança parece ser interrompida pelo número de mortes e rastro de destruição deixado pela fúria da natureza.
Nascido no Atlântico no final de agosto e adentrando para o mês de setembro, o furacão Irma foi a intempérie responsável por tirar a tranquilidade da mais florescida e perfumada de todas as estações, a primavera. Desde que começou a engatinhar, andar e depois correr impetuosamente, o furacão assombrava todas as regiões que estava em sua rota de trânsito, principalmente os 21 milhões de habitantes da Flórida.
Os jornais não falavam em outra coisa, a não ser no furacão. Aliás, desde que foi registrado como Irma, essa tempestade tirou o sono de autoridades, moradores e turistas das regiões. Os ventos de quase 300 quilômetros passariam por várias ilhas do Caribe, por Cuba, mas todas as atenções se voltavam para seu possível alvo final, a Flórida.
Em uma análise geral e rápida, é possível observar que o El País dedicou cerca de 22 matérias para falar do Irma. E desde as primeiras linhas escritas pelo periódico a preocupação era com a intensidade na qual o furacão chegaria na Flórida. Pensava-se que está região seria a mais afetada pelos impactos do desastre. Hipotetizava-se sobre o número de mortos, sobre as perdas financeiras. O estado passou pela maior evacuação de pessoas em toda sua história. O Irma levou 650 mil pessoas a deixarem, temerosas, seus lares.
Mas se a Flórida era o fim, como ficou o começo e o meio?
Primeiro Cuba, depois Miami
Antes da Flórida, o Irma fez uma visita indesejada à Cuba, deixando a capital, Havana, submersa pelas águas. Portais de notícias como Uol e R7, e a própria revista Veja, dedicaram algumas linhas para falar dos estragos. O governo cubano destacou em entrevista a esses sites o número de 10 mortos após a passagem do furacão, além de graves estragos deixados principalmente nas áreas turísticas
Segundo a Agência Brasil em matéria divulgada no portal no dia 14 de setembro, 211 instituições culturais da ilha foram danificadas, entre elas a Casa Museu José Lezama Lima e o Grande Teatro de Havana. Na província central de Ciego de Ávila, uma biblioteca perdeu 80% de seus recursos.
Cortes de energia elétrica, a evacuação de mais de um milhão de pessoas, fortes inundações e danos materiais incalculáveis foram outras consequências deixadas pelo furacão que chegou em Cuba com uma força 5 e posteriormente diminuiu para 4. Escala com a qual chegou a Flórida.
No jornal espanhol, todavia, Cuba ganhou apenas um pequeno espaço em matérias nas quais a protagonista era a Flórida. Nas matérias intituladas “Furacão Irma arrasa ilhas do Caribe e causa desocupação da orla em Miami”e“Furacão Irma: a trajetória da maior tempestade do Atlântico” observa-se uma rápida menção ao país, com breve destaque sobre o que poderia acontecer com Cuba quando o furacão passasse por lá. Mas por que, de fato, os estragos de Cuba não foram tão evidenciados por El País, ao passo que a Flórida ganhou destaque central mesmo antes de o furacão atingir suas belas praias?
A resposta pode estar nos números
A mídia e sua forma de agir é pautada por teorias. Teoremas que embora desconhecidos e despercebidos pela população, constroem toda a estrutura mediática. Alguns acreditam ser ela a única responsável por pautar os assuntos das rodas de conversa, outros defendem a ideia de mediação, onde se tem uma via de mão dupla: a mídia pauta, mas o ouvinte, leitor, telespectador também dita o que deseja ouvir, ler ou assistir.
Deixemos de lado a teoria da conspiração, mas o fato é que Cuba não ganhou destaque em El País, assim como os desastres ambientais na África foram desconsiderados pela mídia global preteridos pelo impacto de Irma nos Estados Unidos da América.
Em uma reportagem intitulada, Por que nos esquecemos das vítimas de catástrofes ambientas da índia e do continente africano?,o El País apresentou algumas cidades africanas que somente neste ano, tiveram 25 vezes mais vítimas do que as provocadas pelo furacão Harvey. A capital de Serra Leoa, Freetown, teve um número de cerca de mil mortos, além de “centenas de milhares de afetados por uma das piores inundações da história e um mortífero deslizamento de terras”. No Niger, milhares de pessoas foram retiradas às pressas da capital, Niamey, a fim de evitar um outro desastre semelhante a tragédia de junho, onde 44 pessoas perderam suas vidas em decorrência das tempestades torrenciais.
Nos Estados Unidos, o furacão Harvey deixou 60 vítimas em Houston, Texas; o Irma deixou 25 mortos no Caribe e 42 na Flórida, segundo divulgado pela revista Istoé. São números expressivos e vidas significativas, mas não chegam aos pés dos números oriundos dos desastres ambientais pelos quais passaram países da África e da Ásia. Por que então, os Estados Unidos continuam ganhando maior espaço nas mídias globais? Situação um tanto quanto irônica.
Ironia
Catástrofes ambientais nos Estados Unidos da América não são novidades. São recorrentes notícias sobre tempestades, furações, tsunamis e outros indícios da fúria da natureza envolvendo a nação do Tio Sam. O curioso, se não inusitado, é que assim que assumiu a presidência, o polêmico presidente, Donald Trump, decidiu tirar “seu” país dos acordos climáticos de Paris e anular as obrigações da nação com a questão do aquecimento global. Segundo o político, “o conceito de aquecimento global foi criado pela China para acabar com a competitividade da indústria americana”. Em contrapartida, estudos comprovam ser o homem o maior responsável pelo aquecimento do planeta.
Que o aquecimento é causado pela ação do homem a mídia nunca se esquivou de mostrar, assim como ela deixou bem claro as maluquices de Trump. A Organização Mundial de Saúde, em reportagem escrita pelo El País, destacou que os desastres naturais provocados pela mudança climática ocasionam 60 mil mortes por ano, “com indigência maior nos países com índices mais baixos de desenvolvimento”. O continente Africano tem sete dos 10 países mais vulneráveis à mudança climática.
El País. De um lado, aponta a ausência de cobertura nos desastres de países africanos, inclusive chama essa postura de apartheid climático, questiona o fato das maiores tiragens de jornais globais terem na capa as vítimas de Houston, de apenas os próprios jornais africanos – sem muita visibilidade mundial – mostrarem as nuances de seus problemas; mas de outro, assume postura semelhante da maioria da mídia, pois foca no Irma na Florida, mas deixa de lado o Irma em Cuba.
O motivo dessa postura? Prefiro não arriscar um postulado. Afinal, não ouso me considerar um formador de opinião e ditar as linhas de pensamento de alguém. Todavia, algo precisa ser considerado: assim como a mídia seleciona os dados a serem repassados, eu, como leitor, prefiro voltar meus olhos para os mais de 7 milhões de pessoa sem luz, danos de até 50 bilhões de dólares (155 bilhões de reais), os postos de gasolina, aeroportos e estradas fechados na linda Flórida, do que para um pouco mais de um milhão de evacuação na Cuba comunista de Fidel Castro ou no lado “feio” do mundo chamado África.
Enfim, mais uma vez as várias “Cuba’s” da vida vão sobrevivendo em segundo plano, enquanto os números prosseguem ditando a pauta do dia.