Os anversos e reversos do fundamentalismo
- 26 de abril de 2017
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- Thamires Mattos
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As frentes fundamentalistas cresceram em boa parte do mundo no último ano. O termo se refere a crenças dos livros sagrados como única regra de vida. Seu início se deu no começo do século XX quando protestantes nos Estados Unidos passaram a exigir a crença ao pé da letra na Bíblia. Desde então, conflitos ao redor do mundo têm se tornado mais frequentes e aos olhos da sociedade ocidental, o fundamentalismo trata-se de um retrocesso e é sinônimo de terrorismo e extremismo. Seja no campo religioso ou político, as frentes fundamentalistas chocam o mundo com seus discursos e atitudes, porém, conseguem acumular grande número de colaboradores. A mídia exerce papel fundamental nesse contexto. Para tratar do tema, nesta edição do Canal, o repórter Ronaldo Pascoal conversou com Flávio de Leão Bastos Pereira e Hermenérico Morais.
* Bastos é mestre em Economia e Direito Político e leciona a disciplina de Direitos Humanos e Direito Constitucional na Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo, além de ser membro da lista de peritos da Academia Internacional de Princípios de Nuremberg e membro da Rede Internacional de Pesquisadores de Genocídio (INoGS).
* Morais é graduado em Teologia e Biblioteconomia e pós-graduado em Docência do Ensino Superior. Atualmente ensina a disciplina de Antropologia.
Canal da Imprensa: Por que existe esse equívoco em considerar toda frente fundamentalista como ruim e até mesmo terrorista?
Flávio Bastos: Fundamentalismo significa qualquer ação ou movimento de matriz conservadora e integrista, marcado pela literalidade na interpretação de princípios, escrituras etc., caracterizado pelo rigorismo e avesso a qualquer flexibilização de princípios. Portanto, se considerarmos que vivemos num mundo assimétrico, plural (a pluralidade é a lei da terra, como disse Hannah Arendt), podemos entender que uma visão fundamentalista, atualmente relacionada ao radicalismo, não pode ser vista de forma positiva.
Hermenérico Morais:Para tratar de fundamentalismo, é preciso primeiro resolver o problema conceitual. O termo fundamentalismo surgiu no início do séc. XX definindo a sujeição ou compromisso a certas crenças e doutrinas, ou seja, a ideia de basear sua vida em determinados fundamentos. Posteriormente, fundamentalismo passou a ser entendido como a crença na literalidade de escritos religiosos, no caso do cristão, na literalidade da Bíblia. Para outros círculos, mais recentemente, fundamentalismo é o apego às suas crenças e intransigência no diálogo religioso, além de uma reação negativa e violenta aos pensamentos divergentes. A confusão no significado dos termos e a relação que se faz deles com o terrorismo tem ocasionado esta situação.
Canal: De fato, o fundamentalismo é de todo negativo?
Bastos: A partir do momento que busca “impor” suas visões(é o caso do Wahabismo Sunita do Estado Islâmico e da Arábia Saudita; também de doutrinas de visões políticas extremas), parece-me que sim, é negativo, posto não observar e respeitar o pluralismo político e humano. (Obs. não confundir “pluralismo político” com “pluralismo político-partidário”).
Morais: Alguns não têm nada de errado, por exemplo, aquele que diz que a pessoa possui fundamentos sobre os quais baseia a sua vida. De certa forma é comum a todos, pois, todas as pessoas têm crenças básicas. A ideia de que a Bíblia deve ser entendida de modo literal, também como conceito, não é errada em si. Pode se tornar errada? Em algumas situações, sim. Quando faz aplicações erradas do texto ou perde de vista a necessidade de interpretação, mas crer na literalidade da Bíblia não é errado. E obviamente, a última definição está errada em sua forma de lidar com os outros, é preciso respeitar as diferentes ideias e aceitar as pessoas.
Canal: A mídia desempenha um papel importante na opinião pública. A visão negativa das frentes fundamentalistas é responsabilidade dos grandes veículos de comunicação?
Bastos: Embora possa existir manipulação em vários casos veiculados pela mídia, via de regraela tem imprimido o adjetivo fundamentalista a casos de radicalismo político-religioso. Portanto, não me parece que a mídia tenha tal responsabilidade.
Morais: Sem dúvida, neste tópico, a mídia tem um papel muito importante. Algumas vezes, quando os veículos de comunicação apresentam notícias ou tratam do tema, nem sempre tem o cuidado de diferenciar um conceito do outro. Pessoas que sustentam a crença na literalidade da bíblia, que volto a dizer, não estão só, por isso, erradas, são tachadas de fundamentalistas e são comparadas àqueles que tratam os que pensam diferente deles com violência. É verdade que existem grupos que reagem com ódio à diferença e que são alimentados através do discurso religioso de suas comunidades de fé, mas generalizar estes conceitos e grupos, é prestar um desserviço à sociedade, é inclusive prejudicar aqueles que participam destes grupos, percebem o erro e tentam mudar o discurso, mas sofrem o preconceito social que este discurso provoca. Seria muito melhor e proveitoso, que a mídia definisse bem os termos e abordasse cada um destes grupos com a especificidade que cada um deles, além de permitir que sejam avaliados pelo que de fato acreditam e não por um rótulo. Essa abordagem, felizmente, é tomada por alguns veículos de informação.
Canal: Qual seria então, um caminho alternativo já que o fundamentalismo mostrou ser perigoso?
Bastos: Só o entendimento no plano internacional, pelos prismas político, religioso e étnico. Sistemas educacionais também devem ser comprometidos com o pluralismo humano. Contudo, entendo praticamente impossível tal entendimento.
Morais: Creio que exista, mas não saberia prever sua eficiência. Os grupos que se apoiam no ódio e violência para lidar com a diferença entre as pessoas deveriam refletir, primeiro, se suas crenças de fato pedem esta ação. Se crerem que este discurso é apoiado por suas crenças, se somente este caminho é oferecido. E por fim, se o único discurso que sua ideologia propõe é o ódio, se esta forma de pensar está correta. Alguns fatores podem apontar este outro caminho, como o diálogo e o respeito religioso, a educação e a reflexão crítica, mas a cultura, relações afetivas e fatores psicológicos ligados ao extremismo, podem ser fortes demais para serem superados. Na verdade, há o perigo de qualquer ideia se tornar extremista, mesmo a luta pela liberdade religiosa ou de expressão pode se tornar extrema, sendo assim, o recado acima serve para todos.
Canal: Onde se localiza a linha que separa fundamentalismo de extremismo?
Bastos: Atualmente há uma linha tênue. O fundamentalismo, tal com praticado hoje, está conectado com os principais movimentos extremistas (políticos e religiosos).
Morais: Essa é uma pergunta que talvez não seja possível dar uma resposta satisfatória. Seria muito bom termos uma espécie de “medidor de extremismo” que pudéssemos aplicar às ideologias ou filosofias, para determinar quando uma coisa virou outra, mas infelizmente isso não existe. O que existe é a situação onde algumas crenças, segundo alguns autores, se tornam perigosas para a sociedade e o próprio indivíduo, o levando a ações contra ele mesmo ou aos que se opõe às suas ideias, mesmo que essa oposição seja somente imaginada. Apesar do reconhecimento que talvez seja difícil de notar quando a mudança acontece, algumas características vão acompanhar estes indivíduos, como um isolamento social, um senso de superioridade, uma dificuldade de aceitar aos outros e um sentimento de culpa, natural ou imposto. Estas características podem ser o sinal de alerta para alguém cujas crenças estão se tornando extremas.
Canal: Esses dois pontos podem conviver separadamente?
Bastos: Na prática, acho difícil. Se uma postura se mostra por demais rígida, vem acompanhada de certo radicalismo. O problema se dá quando a visão passa a ser imposta a quem dela não compartilha.
Morais: Sim, é completamente possível as pessoas terem fundamentos sobre os quais baseiam a sua vida e crer na literalidade da Bíblia sem se tornarem extremistas. Portanto, fundamentalismo e extremismo, como conceito estão distantes. Somente quando entendemos fundamentalismo como um discurso de ódio que promove a separação e agressão entre as pessoas que percebemos a fusão entre os dois conceitos.
Canal: Se essas frentes continuarem a crescer, o mundo precisa se preocupar?
Bastos: Creio que o mundo já passou do ponto de se preocupar. A instabilidade é mundial. A guerra da Síria mostra isso. Trata-se de um conflito sem precedentes quanto ao número de grupos combatentes, com diversas visões de mundo e apoiados por distintos atores de peso na geopolítica mundial (Rússia, EUA, OTAN, Irã etc.). Também na África temos a maior guerra desde o fim da SegundaGuerra Mundial, no Congo, com mais de cinco milhões de mortos. Os ocidentais mal sabem sobre isso. O Oriente Médio é um barril de pólvora. Na Ásia, Coréia do Norte lançando mísseis no Mar do Japão e a Rússia se defrontando cada vez mais com a OTAN. Portanto, o mundo já transpôs de há muito, a fase da preocupação. Precisamos reformar a estrutura da ONU, especialmente do Conselho de Segurança e modernizar os foros de discussão.
Morais: O extremismo é algo que afeta a sociedade e o próprio indivíduo. Desta forma, é sempre um motivo de preocupação. O fundamentalismo e o extremismo precisam ser discutidos pelo que são, de forma transparente, para que tanto o erro daqueles que advogam crenças erradas possa ser confrontado, quanto aqueles que não possuem este caráter negativo possam se ver livres do estereótipo. A busca pelo diálogo e pela aceitação do diferente pode unir e aparar arestas culturais a fim de que o ser humano seja visto em sua essência e recebido em sua igualdade e peculiaridade fundamental.