Um império feito de silêncios e a força de quem desafiou o poder
- 6 de novembro de 2024
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- Theillyson Lima
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Quantas histórias precisam ser caladas antes de quebrarmos o ciclo de abuso?
Vefiola Shaka
Por décadas, Hollywood vendeu sonhos para muitos enquanto escondia os pesadelos de alguns. Em seus corredores dourados e bastidores sombrios, muitas histórias se desenrolavam fora dos roteiros. Não eram casos isolados, como queriam nos fazer acreditar. Era um sistema inteiro construído com abuso, poder e medo.
Os números são bem assustadores: 94% das profissionais da indústria do entretenimento relataram ter sofrido alguma forma de assédio ou abuso. Pense nisso por um momento. Não estou falando de uma minoria. Estou falando de uma indústria inteira.
Em outubro de 2017, o New York Times publicou uma reportagem que seria o plot twist de Hollywood. Harvey Weinstein, o produtor todo-poderoso da Miramax, havia construído um império sobre corpos e traumas silenciados. Finalmente, mais de 80 mulheres encontraram coragem para compartilhar suas histórias de abuso. A condenação a 23 anos de prisão não foi apenas a queda de um homem, mas foi a primeira rachadura em um sistema que parecia impenetrável.
Weinstein não era uma anomalia. Era um sintoma. Querendo ou não, a ponta de um iceberg de abusos de poder. Em diferentes contextos, o mesmo padrão se repetia com precisão assustadora não apenas no mundo dos sonhos hollywoodianos. Nos espaços olímpicos, Larry Nassar transformou o sonho de mais de 330 ginastas, incluindo a atleta de ouro Simone Biles, em um pesadelo traumático que duraria décadas. No Brasil, com certeza o caso de João de Deus, que usou a fé como arma contra centenas de mulheres, seria um dos mais marcantes da história recente.
O que conecta estes três casos?
Cada um destes homens atuava em espaços influentes: Weinstein no cinema, João de Deus no mundo espiritual e Nassar no esporte, o que permitiu a eles explorar as vítimas em momentos de vulnerabilidade. Nestes ambientes com alta concentração de poder, a tensão gera o que a psicanálise chama de “sistema perverso”, no qual os abusos são permitidos e até encobertos.
Essas ações repetidas são toleradas até porque o sistema (como o de Hollywood, uma seita espiritual ou o mundo esportivo) possui um mecanismo de silenciamento e racionalização inconsciente. O poder é mascarado como carisma ou autoridade, o que cria um “contrato” implícito de confiança com as vítimas e com aqueles que o cercam, e esse contrato torna-se difícil de quebrar.
O poder institucional, o silêncio e a mídia que por muito tempo preferiu o sensacionalismo à investigação profunda são outros fatores determinantes. A maioria das vítimas nunca denunciou por medo de retaliação porque os agressores ocupavam posições de poder direto sobre elas. No final das contas, estes três casos foram condenados pela justiça desta seguinte forma: Harvey Weinstein: 23 anos, João de Deus: 498 anos, Larry Nassar: 175 anos.
A verdadeira punição não fica atrás desses números, mas em destruir os sistemas que permitiram que esses abusos acontecessem. As vítimas que encontraram coragem para romper o silêncio transformaram suas dores em força coletiva. Simone Biles voltou às competições e se tornou porta-voz contra abusos no esporte. Ashley Judd, uma das primeiras a se pronunciar sobre o Weinstein, hoje é líder de movimentos contra os abusos na indústria. Enquanto muitas outras criaram organizações de apoio que ajudam as vítimas de assédio a ter acesso à assistência jurídica. São histórias de resiliência que mostram que, embora não possamos mudar o passado, podemos ressignificar o futuro.
E isso começa com nossa disposição em ouvir, realmente ouvir as histórias que por tanto tempo nos recusamos a escutar. O jornalismo tem um papel fundamental nesta transformação. Durante muitas leituras e pesquisas sobre o que aconteceu com Simone Biles, é notório que existem somente citações da atleta e nenhum tipo de contextualização mais profunda. Não podemos mais nos esconder atrás do “ele disse, ela disse” para publicar mais um material. Precisamos de investigação profunda, de contextualização, de coragem para enfrentar estruturas de poder.
Quando uma vítima encontra coragem para falar, ela não está apenas contando sua história, está testando nossa capacidade de escuta. E a pergunta que fica não é mais “por que elas não falaram antes?”, mas sim “por que demoramos tanto para ouvir?”.
Ouvir significa mais do que apenas registrar palavras. Significa reconhecer nossa própria cumplicidade no sistema que permitiu que tantas vozes fossem silenciadas por tanto tempo. Significa aceitar que mudança real requer mais do que hashtags e indignação momentânea – requer ação constante e vigilância permanente.
E você, está realmente pronto para ouvir?