Tupiniquim na Sapucaí
- 16 de agosto de 2017
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- Thamires Mattos
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Tradição de índio não é assim; mulher de índio é diferente; coca, chocalho e terra são coisas sagradas; sol, estrelas, a lua são deuses da tribo. E depois da apropriação cultural?
Luciana Ferreira
Desde que era curumim, índio nutria em seu coração o desejo de atravessar a floresta e conhecer o que existia além daquelas imensas muralhas vegetais que compunham a única paisagem que lhe fora apresentada. O que de fato tinha lá, ele conhecia só por histórias, tradições orais repassadas pelos mais velhos da tribo ou contadas por missionários, médicos que sempre visitavam a aldeia. Mas aquilo não lhe bastava. Amava sua cultura, gostava de seus costumes, exaltava seus deuses, reconhecia suas pinturas e símbolos, mas algo o imbuía a pular para o lado de lá.
Certo dia, índio não mais tão curumim, deixou para trás sua oca, sua tão cuidadosa dana, que à porta observava seu mirim pitanga ir-se embora rumo ao desconhecido. No centro da tribo seu damama, um cacique, organizava a saída dos homens para mais uma caçada, entretanto, não lhe saia da memória a cena dever seu mirim pitanga partir.
Após dias caminhando, atravessando rios, ultrapassando imensas árvores, perpassando por caminhos a priori conhecidos, mas que com o tempo foram se tornando diferentes, se imbricando no mais profundo da floresta, índio chegou enfim a um lugar de fato desconhecido.
Havia umas coisas enormes que índio ouvira alguém chamar de construção. Algumas até lembravam as ocas de sua tribo, embora fossem nomeadas de casas. Mas índio, esperto e observador como era, logo entendeu se tratar de locais onde as pessoas se abrigavam do deus sol, da deusa lua e da chuva. E lá tinha filtros dos sonhos. Índio os conhecia bem, pois sua mãe falava de povos indígenas do outro lado do país os quais utilizavam aquele objeto como proteção e para captar sonhos.
Caminhando um pouco mais, índio viu coisas se locomoverem com pessoas dentro. Pareciam com os barcos usados nos rios da tribo, todavia, soltavam fumaça no ar, eram barulhentos e pareciam perigosos. Índio chegou a pensar na existência de um real perigo fora da aldeia. Mas já estava ali e o jeito era explorar.
Passou por um daqueles edifícios e viu um grupo de curumins reunidos. Estavam todos muito bem vestidos para um lugar tão quente, um era bem diferente do outro, mas o que de fato chamou atenção do índio foram palavras e símbolos familiares. Uma mulher magra, alta e loira distribuía para as crianças alguns cocares. Índio olhou confuso, pois as crianças pareciam pequenas demais para serem fortes guerreiros. Na tribo o cocar era um símbolo sagrado. O direito para usar o objeto era conquistado bravamente por meio de lutas e consentido pelos líderes da tribo. Mas índio não vira nada disso ali. Não havia pajé, não tinha cacique. Talvez estivessem em um ritual sagrado ou em uma conquista festiva, ou quem sabe clamando por proteção. Para índio, aqueles curumins não sabiam de fato o porquê usar aquilo.
Índio ficou triste, pois queria mostrar a importância daquele símbolo em sua tribo, todavia, uma grade o separava de onde estavam as crianças. Tentou gritar, chamar a atenção. Por meio do reflexo no vidro viu que os pequenos sorriam e com o pouquíssimo domínio do Português, observou escrito na lousa (artefato apresentado pelas professoras que esporadicamente iam à tribo) 19 de abril, Dia do Índio.
Ficou mais confuso ainda e frustrado saiu. “Como pode ter dia do índio, sem índio?”, indagou consigo mesmo. Mas não saltou vazio, em sua mente ressoavam sons de nomes conhecidos que ouvira entre os curumins: Peri, Ubirajara, Macunaíma, Iracema, dentre vários outros. De repente, se deparou com cores e cheiros de frutas e legumes familiares: abacaxi, açaí, aipim, mandioca, jabuticaba, jenipapo, jerimum.
O tempo foi passando e apesar de aparentar incomodo, índio parecia querer ficar naquela civilização. Já estava se sentindo um pouquinho em casa, achando as coisas um pouco familiares, parecia até que eles o entendiam. Via um pouco de sua cultura ali. Um dia desses, andando por um lugar onde os bichos permaneciam enjaulados, em condição diferente daqueles da floresta outrora atravessada por ele, índio encontrou mais nomes familiares. Desta feita, era vez da fauna saudar suas lembranças de um lar deixado para trás: jacaré, jiboia, sabiá, tucano, arara, tamanduá, e a lista era imensa. Ele estava triste pela condição dos bichos, mas se eles deram nomes da língua de índio para os animais era porque amavam índio. Sendo assim, aquele lugar atrás das árvores não poderia ser tão ruim. Índio decidiu ficar mais um pouco por ali.
Passou ainda por grandes construções como o Maracanã, se entrelaçou nos galhos das árvores de bosques que lhe lembravam os cipós da mata próxima à tribo, correu e rolou no capim com as crianças e os bichinhos domésticos. Se não fosse a tradição, os costumes, a ausência de tantas roupas e a falta da dana e do damama, poderia seguramente imaginar estar em casa. Na verdade, índio já estava se acostumando àquela nova “oca”.
Mas para se adaptar, índio viu-se obrigado a entrar na escola, arrumar um emprego, no qual não mais lavrava o solo tão sagrado como outrora fazia em sua tribo. Terra esta que na tribo era um bem coletiva, diferente daquele lugar, no qual as pessoas detinham parte da propriedade. Para índio, a terra era “seu chão cultural, habitada por suas tradições, referência básica dos seus valores vitais, prenhe de mitos, campo de sua história”. Todavia, agora ele varria o solo, mas não era dono dele. Solo este duro, de concreto, onde índio mais tarde faria uma de duas mais duras descobertas.
Tribo na Sapucaí
Naquele dia difícil de esquecer, índio estava na Sapucaí. Varria tudo, pois haviam lhe dito que mais tarde teria festa e índio apreciava festividades. Além disso, as pessoas olhavam para índio, que apesar de algum tempo longe de sua tribo ainda trazia em seu corpo marcas de pinturas representando as manifestações culturais de seu povo. Nascimento, caça, casamento, morte, tudo era expresso nas pinturas marcantes do corpo e da alma dos seus conterrâneos. As pessoas olhavam e riam. E índio não entendia muito o porquê.
O dia passou e veio a noite. As luzes foram acesas, carros gigantes com pessoas, cores, penas, cocares, chocalhos. De repente solta-se a música, mulheres seminuas, diferente das índias, mas com “roupas”, “pinturas” de indígenas sobem nos carros. Elas dançam uma dança que índio não reconhece, cantam melodias que índio não conhece, aquilo não parecia com nada que índio vivera na aldeia.
Índio estava cada vez mais confuso e entristecido. Conversa com um, com outro, vendo seus símbolos sagrados serem usados de maneira profana, terem seus sentidos esvaziados. A escola de samba então passou e índio se viu sozinho diante aquele solo de concreto. Ainda quieto, embora com a decisão de voltar para seus costumes, sua gente, seus rios e árvores, índio observa duas pessoas que passam. Talvez tenham elas respostas para as indagações de índio sobre o acontecido daquela noite. “Pode ser que elas ouçam índio. Índio ouviu elas na escola. Índio aprendeu delas. Acho que elas vão querer conhecer os ritos de índio”, pensou alto.
– Ei, vocês aí. Esperem por índio.
Os dois boêmios param, olham para aquele andarilho da noite e sorriem. Pensam que talvez ele fosse um dos figurantes daquela escola de samba que horas antes desfilara na Sapucaí com o tema que “homenageava” os povos indígenas brasileiros.
Índio corre na direção dos homens e solta tudo aquilo que lhe incomoda. Diz que tradição de índio não é assim, mulher de índio é diferente, coca, chocalho e terra são coisas sagradas, sol, estrelas, a lua são deuses da tribo. Fala, fala, fala, mas de nada adianta. Índio então, desanimado, pergunta para os dois desconhecidos como se chamava aquilo que havia passado naquela estrada.
Um dos homens, embora bêbado, não deixava de ter certo conhecimento “intelectual” e mesmo duvidando de que índio era de fato um índio, soltou uma gargalhada e diz: Cara, isso é Apropriação Cultural.