Sotaque: expressão cultural e necessária
- 26 de outubro de 2022
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- Theillyson Lima
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Por que em meio a expansão cultural o sotaque ainda é discriminado no meio jornalístico?
Lucas Pazzaglini
O Brasil é o maior país da América do Sul, tanto em extensão quanto em população. A área de 8.516.000 km² abriga mais de 212,6 milhões de pessoas. De ponta a ponta do país, culturas divergentes tomam espaço entre as diferentes regiões que fazem parte da nossa construção. Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul, cada uma dessas regiões contém origens próprias e, portanto, uma forma específica de vivência.
Dentro disso, uma das características mais específicas de cada região, estado ou até mesmo cidade, é o sotaque. A palavra tem como significado: tom, inflexão ou pronúncia particular de cada indivíduo ou de cada região, ou seja, faz parte da construção cultural de cada indivíduo.
Tendo isso em vista, a pergunta que sobra é a seguinte: por que algo tão culturalmente rico e identitário não é visto em conteúdos jornalísticos com maior frequência? Afinal, um país com tamanha extensão e diversidade deveria compreender a importância de inserir sotaques representativos nesse meio.
O sotaque “certo”
Mas essa pergunta ainda não é a correta se observada de um plano maior. Os sotaques paulista, com o “R” carregado, e carioca, com o famoso “chiado”, aparecem na televisão diariamente e são recebidos sem questionamentos. Por que esses sotaques são aceitos com mais facilidade do que os das regiões Norte e Nordeste?
A resposta pode ser encontrada no passado, junto ao advento da televisão e do rádio no Brasil, quando a maioria das produções audiovisuais, sendo produtos de entretenimento ou telejornais, eram executadas no Rio de Janeiro e consequentemente em São Paulo, devido a parceria vitalícia entre os estados, que na época comandava o império econômico do país.
Mas isso é tão passado. O julgamento de que apenas esses sotaques tem vez dentro do jornalismo gera a crença de que o sotaque carregado representa falta de profissionalismo ou que as falas ditas necessitam uma dupla checagem. E é por esse motivo que o sotaque deve estar cada vez mais presente no jornalismo.
O “carioquês” nem sempre foi aceito, mas agora ele é o sotaque “normal” para a televisão. Não é justo que um sotaque seja caracterizado como certo e todos tenham que se adaptar a essa realidade, enquanto são discriminados. Isso se dá justamente pela presença de um sotaque específico nas grandes cadeias televisivas. Enquanto os sotaques não forem inseridos nas redes o preconceito, com relação a eles, continuará existindo.
O sotaque e o profissional
Podemos tomar como exemplo o jornalista Francisco José. Sendo cearense sempre teve a fala encorpada com o sotaque característico da sua região. Quando veio para o Sudeste, trabalhar na Rede Globo, sofreu uma grande pressão para perder o sotaque, até contrataram uma fonoaudióloga para ajudá-lo nessa tarefa. Mas, após lutar por sua identidade, pôde mantê-la e foi aceito.
O jornalista cobriu quatro Copas do Mundo, fez diversas reportagens especiais e atuou ativamente no Globo Repórter, até 2021 quando foi desligado da emissora Globo. Francisco construiu uma trajetória jornalística surpreendente e invejável, e tudo isso, sem descartar seu sotaque, uma prova clara de que ele não interfere em parte alguma no profissionalismo do jornalista.
O sotaque como ferramenta jornalística
O sotaque, além de ser uma expressão cultural importantíssima que deve ser mantida, pode atuar como uma ferramenta jornalística eficaz. Em meio a uma era de “fake news” a pessoalidade é o caminho ideal para promover a relevância das falas expressadas. Afinal, por vezes, pessoas têm escolhido acreditar em informações passadas por familiares ao invés de transmitidas por grandes jornais.
Através do sotaque pode ser formada uma familiarização e assim, consequentemente, a informação será recebida de uma melhor forma. Uma pequena alteração na forma de transmitir a informação pode alterar o processo de recepção. Esse conceito pode ser comprovado pelo psicólogo Peter Watson, que, em 1960, criou o termo “Viés da Confirmação”.
O estudo chegou à conclusão de que nós procuramos informações que confirmem nossas crenças, ou seja, buscamos o que é mais pessoal para nos apoiarmos. O sotaque é a melhor forma de se familiarizar com o público. Um mineiro que reconhece o sotaque mineiro na TV vai pensar duas vezes antes de julgar a informação, mesmo que contradiga seus pensamentos.
O certo e o errado
Mas já partindo para o final, quero deixar claro a problemática do tema, caso não tenha ficado explícito: a pergunta não é “será que o sotaque deveria estar no jornalismo?” e sim, “o sotaque já está no jornalismo, mas por que não são todos?”
Como dizer qual sotaque é o correto quando nossa língua não foi “criada” e sim formada por diversos dialetos? Não existe um português brasileiro puro. Não existe o certo e o errado, existe o que foi dado como certo e o que foi dado como errado.
O jornalismo deve ser a porta de entrada para a pluralidade cultural e linguística. Por ser uma ferramenta democrática e acessível, estamos diante de uma chance única de transmitir uma mensagem correta com relação aos regionalismos e sotaques.