Sorry to Bother You, mas precisamos falar sobre luta de classes
- 30 de outubro de 2019
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- Thamires Mattos
- Posted in Sessão Cultural
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O filme Sorry to Bother You pode ser tudo, menos previsível. Com tudo, quero dizer tudo mesmo. A imprevisibilidade do filme te faz, a cada poucos instantes, descobrir algo totalmente novo
Rafaela Vitorino
Se você espera um filme sobre racismo, encontrou. Se espera um filme sobre diversidade, terá. Se você espera refletir acerca de normas sociais e econômicas predominantes e vigentes, acertou também. Sorry to Bother You consegue abordar tantos assuntos, ao mesmo tempo que conecta todos eles. Tudo isso e mais um pouco.
Antes de começar, já sabia: trata-se de um filme diferente dos que tem por aí. Mas, até então, tudo bem. Mais que bem, interessante, afinal, estou acostumada e gosto de produções cinematográficas fora do padrão hollywoodiano. O início do filme, dá a entender que irá tratar de assuntos complexos de forma cômica e leve. Mas não é preciso avançar muito para perceber críticas que vão se tornando cada vez mais profundas – além de incrivelmente bem planejadas. Sem perder o humor, aos poucos, o filme revela seus dois temas macro: racismo e capitalismo selvagem – se é que alguma forma de capitalismo não é selvagem.
Acompanhamos a vida de Cassius Green (Lakeith Stanfield), um jovem negro desempregado, que passa por constrangimentos e parece não pertencer àquilo que “a sociedade exige”. Cash, como é chamado, procura um emprego numa empresa de telemarketing que, curiosa e propositalmente, fica no subsolo do prédio. Durante seu primeiro dia de trabalho, Cash se depara com duas realidades: seu local de trabalho, ao qual só se chega descendo as escadas, e o local de trabalho dos power callers, que pegam um elevador para chegar ao topo do prédio. Ambos dividem o mesmo espaço, mas com realidades diferentes – ou, nem tanto.
O emprego não era exatamente aquilo que Cash sonhava. Afinal, uma dúvida que acompanha o personagem ao longo do filme é efeito de suas crises existenciais: “o que vou deixar para o mundo depois de morrer?”. Além disso, de acordo com seu próprio chefe, qualquer um pode trabalhar como atendente de telemarketing. Mesmo assim, Cash não obtém muito sucesso em suas primeiras tentativas.
A cena só começa a se modificar quando outro trabalhador da empresa, Langston (Danny Glover), aconselha Cash a usar uma “voz branca”. A voz traria a impressão de alguém que parece despreocupado em vender. É aí que a crítica se aprofunda mais um pouco e percebemos a ideia que o filme quer passar: para fazer dinheiro, você precisa de dinheiro, ou, ao menos, deve aparentar tê-lo. E essa aparência é branca.
A “voz branca” de Cash é encarada por alguns personagens como mágica, e, por outros, como perturbadora. Mas, seja como for, ela funciona. Cash passa a vender como ninguém e se torna um sucesso. Não demora muito para ele se tornar um power caller e passar do subsolo ao andar mais alto da empresa. Lá, ele precisa vender mais do que enciclopédias. Os produtos oferecidos pelo mais alto escalão de telefonistas envolviam severas questões éticas.
Apesar de parecerem tão diferentes, tanto os trabalhadores do subsolo como os da cobertura possuem a mesma função: trabalhar para enriquecer ainda mais os ricos. As formas de trabalho, apesar de “evoluírem”, servem para o mesmo fim.
No mesmo dia em que Cash é promovido, um de seus antigos colegas do andar de baixo, Squeeze (Steven Yun), organiza uma greve em busca de melhores condições de trabalho. Até então, Cash participava das paralisações durante o período de trabalho. Agora, promovido, deixa de fazer parte das greves. Aos poucos, ele se afasta cada vez mais dos amigos e da namorada, pondo em risco seus relacionamentos, mas cada vez mais aclamado por colegas de trabalho. Cash chama a atenção do CEO da Sem Preocupação, o maior parceiro do “Olimpo” do telemarketing. E é exatamente aí que acontece o clímax do filme. As cenas seguintes são realmente chocantes, mas carregadas de uma sátira sensível e tocante. A empresa Sem Preocupação fornece trabalho escravo para seus clientes, prometendo produções que levariam muito menos tempo e dinheiro.
Ao longo de sua jornada, Cash se depara com a realidade e percebe o que realmente importa. Entre altos e baixos, ele se volta à luta dos amigos e passa a fazer parte dela. A tentativa de montar um sindicato trabalhista é, então, conquistada. Mesmo que, muitas vezes, não funcione, os sindicatos são a forma de manter o equilíbrio entre patrão e funcionário.
Sabendo que a riqueza está concentrada na mão de uns, graças ao trabalho de outros, o filme deseja mostrar que a classe trabalhadora tem um poder capaz de atingir os mais ricos: sua força de trabalho. Só deixando de fornecer o que os ricos mais querem, os pobres conseguiriam atingi-los. E os personagens, até certa medida, conseguem. Mas depois, como vê-se por aí, tudo volta ao antigo e típico status quo.
Sorry to Bother You é um filme distópico que mistura aspectos atuais e antigos. O ativista, rapper, produtor e roteirista, Boots Riley, atua como diretor do filme. Ele acerta em cheio nos temas que retrata. Além disso, não é a primeira vez que vemos as atuações de Lakeith Stanfield em produções nas quais o racismo é um dos principais temas, como Corra e Atlanta. Aliás, acredito que nada disso é à toa.
Falar sobre o capitalismo incomoda, e pode-se dizer que fere muitas pessoas. Incomoda os grandes tubarões e fere os peixes que andam em grupo, de acordo com a ideia geral. Mesmo assim, Sorry to Bother You (e eu sei que incomodo), mas, por mais que seja difícil, é preciso acordar e engolir a realidade de que a desigualdade não é uma falha do capitalismo e, sim, uma consequência dele.