Se não pode contra eles, junte-se a eles
- 16 de novembro de 2022
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- Theillyson Lima
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Como Modern Family manipula estereótipos a favor da conscientização.
Mariana Santos
Por mais que muitos brasileiros não tenham essa “clareza de pensamento”, nós também somos latino-americanos. As semelhanças culturais podem não ser muito óbvias em um primeiro momento, mas ficam evidentes quando usamos como régua o preconceito que sofremos. Cada traço, dificuldade ou qualidade são intencionalmente potencializados pelo cinema de Hollywood, contudo, tomando a série Modern Family como exemplo, nem sempre os estereótipos são um ataque à nossa identidade.
A proposta da série é mostrar o dia a dia de uma família estadunidense não muito tradicional. Enquanto Claire Dunphy se casou com Phil e teve três filhos, seu irmão Mitchell se casou com Cameron e adotou uma menina vietnamita. O foco da análise, no entanto, é no terceiro núcleo familiar, composto por Jay (pai de Claire e Mitchell), Gloria, Manny e Joe.
A construção de uma personagem
Apesar de ser madrasta de Claire, Gloria é uma mulher colombiana, sexy e consideravelmente mais jovem que Jay, seu esposo. É Gloria quem protagoniza as principais referências (estereotipadas ou não) à cultura latina e aos costumes tradicionais colombianos.
A série conta que Gloria nasceu em uma vila marcada pela violência e pelo tráfico de drogas e que, antes de se casar com Jay, ela foi casada com um homem atraente e pouco confiável chamado Javier Delgado, pai de Manny. Além de se envolver com crimes e situações que colocavam a vida de sua família em risco, Javier é apresentado como um pai ausente, ao contrário de Jay que cuida de Manny com muita dedicação.
A despeito da vida passada, Gloria tem uma vida tranquila nos Estados Unidos, mesmo assim, atua como uma representante dos interesses de imigrantes que passam dificuldades financeiras na América do Norte. É possível perceber esse cuidado com “seus semelhantes” nos muitos episódios em que Glória emprega trabalhadores hispanos em sua casa, mesmo quando não há muito o que ser feito.
Gente como a gente
Tirando a impressão inicial de uma personagem claramente estereotipada, Gloria é na verdade uma representação de características presentes em inúmeras mulheres latinas. Basta olhar com atenção qualquer família brasileira para encontrar mulheres com personalidade forte, mães superprotetoras, religiosas, animadas, “mandonas” e, muitas vezes, bravas.
A própria representação da mulher sensual não foge muito da realidade, uma vez que a beleza latina é tão conhecida internacionalmente que acaba por hipersexualizar mulheres daqui. Em contrapartida, a série deixa explícito em Gloria, sobretudo a partir da segunda temporada, o cuidado e a fidelidade à sua família.
É como se a série usasse um estereótipo muito conhecido para aprofundar a discussão sobre o assunto, ao invés de simplesmente reforçar uma ideia errônea. Mais do que uma mulher estrangeira e interessada no dinheiro de Jay, Gloria é mãe de dois filhos, é apaixonada por seu marido e é parte importante de uma família pouco tradicional.
Uma questão de preconceito
Em determinados momentos, a série deixa de lado o caráter cômico da trama para dar atenção a pautas importantíssimas. É isso que acontece no episódio 6 da segunda temporada em que Gloria tem inúmeros problemas devido ao seu sotaque.
Desde encomendas erradas até falhas na comunicação familiar, a barreira linguística aparece como um obstáculo a ser superado, contudo, tudo muda quando os demais personagens percebem que Gloria é plenamente capaz de falar “sem sotaque”, mas não o faz por uma questão de identidade cultural.
Mais do que uma comunicação sem ruídos, a série deixa claro que a pressão por uma fala sem características estrangeiras é uma questão de preconceito e xenofobia. Gloria, não faz questão de abandonar sua forma de falar e nem quer parecer natural dos Estados Unidos. Ela é uma mulher colombiana que tem orgulho de suas raízes.
Apesar de Gloria falar inglês fluentemente, em outro episódio, a queixa relacionada ao idioma se torna ainda mais complexa. O problema é que ela sente falta de conversar em espanhol e acha que sua família não sabe o quanto ela é inteligente, uma vez que em sua língua nativa o repertório de Gloria é infinitamente maior. De fato, são dificuldades reais que imigrantes enfrentam diariamente.
Estereótipos por uma “boa causa”
Modern Family é uma série que abraça estereótipos de todos os lados. Cada membro da família carrega consigo uma carga pesada de características típicas do cinema, ao passo que se esforça para expandir a percepção do público.
É possível encontrar sem nenhuma dificuldade a filha “patricinha”, a “nerd” e o filho “burro”; o gay heteronormativo e o “afeminado”; o pai de família “durão” e o emotivo; a mãe “neurótica”; a ex-mulher perseguidora e, por que não, a esposa latina sensual.
Mais do que a aparência ou os traços predominantes, Gloria é a representação hiperbólica de mulheres que costumeiramente são retratadas de forma rasa e preconceituosa. Ela parte de uma apresentação previsível para uma construção complexa e cheia de nuances da mulher latino-americana.