Relação Simbiótica
- 16 de agosto de 2017
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- Thamires Mattos
- Posted in Sessão Cultural
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A apropriação fornece margem para trivialidade e banalização, mas intercâmbio cultural, porém, renova o mundo, aprende-se uma infinidade com a troca mútua
Emanuely Miranda
As aulas de ballet, costumeiramente lotadas por meninas que saltitavam com tules e coques presos no alto da cabeça, minguaram. Os pliés deram lugar ao movimento das cinturas. As mãos das dançarinas brilhavam adornadas com pulseiras semelhantes àquelas que se notavam às 20h na televisão. Era o começo do século 20. Entre 2001 e 2002, a dança do ventre conquistou o Brasil.
Isso ocorreu porque a principal emissora de televisão do país transmitiu a novela “O Clone” , cujo enredo se passava em grande parte no Marrocos. A cultura marroquina tornou-se conhecida por nós. E gostamos do que nos foi apresentado. Muito ouro em muitas joias saltaram aos olhos. A dança, acessórios e até mesmo expressões do país retratado no folhetim foram assimilados pelos brasileiros. “Insh’Alla”, escutava-se entre as gírias deste solo.
A expressão frequentemente proferida por Khadija, personagem de Carla Diaz, soou agradável aos ouvidos brasileiros e foi reverberada pelas bocas daqui. Todavia, o significado desse dizer permaneceu oculto, pois o conhecimento do mesmo se contentou com a superficialidade. Ou seja, não houve a luz do esclarecimento.
Insh’Alla quer dizer “Deus queira”. A expressão é prima distante do nosso “amém” que, por sua vez, significa “que assim seja”. No entanto, a fala marroquina é uma clara referência (e reverência) ao deus cultuado pelos seguidores do islamismo. Alá foi mencionado em vão por muitos que nem faziam ideia da santidade que ele representa para os islâmicos.
Fenômeno semelhante ocorreu em 2009 quando outra novela da mesma autora, Glória Perez, nos aproximou da cultura indiana. Roupas, adornos, dança e palavras novamente agradaram os tupiniquins. “Are baba”, todos falavam. A interjeição se popularizou graças ao Caminho das Índias traçado até aqui.
Esses episódios fomentados pelas novelas não são isolados. Desde sempre, o Brasil absorve elementos de outras culturas e por isso se tornou o que é. Somos um agregado formado a partir da apropriação de pertencimentos alheios. O Oriente, bem antes de Glória Perez, nos cedeu bastante.
O ato de dar parte de si para alguém implica generosidade. Espera-se que a gentileza seja retribuída. A retribuição segue em forma de respeito. Se culturas não fossem compartilhadas e misturadas, jamais teríamos o país que temos. Entretanto, cabe a nós, filhos da pátria, entendermos as origens daquilo que nos foi dado por outros povos. A partir do entendimento, caminhamos com êxito para alcançar a empatia que necessitamos. Uma relação simbiótica entre aquele que dá e aquele que recebe precisa ser construída porque, na verdade, todos os sujeitos envolvidos participam de ambas ações. Todos damos. Todos recebemos. Via de mão dupla.
Faz sentido receber um presente e desrespeitar o remetente do mesmo? Usar turbantes e ser racista: eis o problema. Trançar o cabelo ou preenche-lo com dreads sem disponibilizar engajamento na luta contra o preconceito é um ato grosseiro. De igual modo, não seria coerente repetir expressões faladas por personagens de “O Clone” e, erroneamente, generalizar todos os muçulmanos como terroristas.
Apropriar-se de elementos de uma fatia da sociedade e ao mesmo tempo não a valorizar beira a ingratidão. A destituição do valor direcionada a outrem ocorre até mesmo quando lhe designamos um preço mercadológico. O capitalismo, que conta com nossa participação como agentes, reduz povos ao lucro. Na busca desenfreada por capital, comercializamos peculiaridades de culturas e subestimamos significados amplos dos elementos culturais. A ambição diminui, desconsidera e machuca.
O terceiro olho, frequentemente usado como acessório alegórico em sociedades ocidentais e consequentemente comercializado à exaustão, transcende sua função como enfeite. Na tradição hinduísta, trata-se de uma glândula intrinsicamente ligada à capacidade intuitiva. Sob a ótica espiritualista, a representação do terceiro olho por meio de um acessório tem poder vasto. Por trás de um objeto, há muito. Usá-lo sem considerar o tanto de história que ele carrega configura o usuário como ignorante. Vendê-lo sem escrúpulos em razão da lucratividade caracteriza vendedor e comprador como arrogantes.
Não é mimimi e talvez assim pareça porque é difícil entender aquilo que não conseguimos sentir. Para facilitar: seria equivalente a comercializar figuras da cruz como se fosse um artigo superficial. Incomoda demais ver algo inestimável para nós sendo utilizado de maneira frívola. Doeu na ferida, cristãos? Ficou mais fácil de compreender agora, certamente.
E foi por isso que líderes hindus dos Estados Unidos pediram que a cantora Selena Gomes se desculpasse por usar o terceiro olho, também conhecido como bindi, durante apresentação no MTV Movie Awards. O porta voz da organização Rajan Zed exaltou a importância religiosa do objeto e ainda disse: “Não é para ser usado como algo com efeito sedutor ou acessório da moda. Selena deveria pedir desculpas e depois descobrir mais sobre as religiões do mundo”.
Em tempos de Caminho das Índias, atitudes como a de Selena Gomes ocorreram no Brasil. Todas queriam ser Maia da mesma forma que um dia desejaram ser Jade. Bindis do Oiapoque ao Chuí. Foi o tempo de uma novela para a modinha passar. Não nos incomodou ver o sagrado de alguém surgir feito banalidade e evaporar como efemeridade. Mas e se a cruz fosse tratada com similar leviandade? Are baba, digo, Ave Maria!
Não é do nosso feitio designar aos símbolos santos dos outros a mesma reverência que empregamos nas nossas causas. Nos apropriamos sem pudor. Sem entender, nos imiscuímos no cerne de identidades das quais não somos donos. A exploração de ícones religiosos do hinduísmo se mostra como mais um exemplo disso. Camisetas estampadas com divindades do panteão hindu se alastram no tronco de pessoas que não adoram os desenhos que carregam. Rosários com semente de rudraksha envolvem pescoços, mas a crença de que pode ser algo milagroso se faz ignorada pelas mentes acima deles. A prática do yoga se popularizou, mas suas raízes são desconsideradas.
Na antiguidade, um dançarino do Noroeste da Índia improvisou movimentos instintivos e elaborados. Seus discípulos perpetuaram aquilo que fora ensinado por ele e ainda o elevaram à mitologia com o nome de Shiva. Desconhecedores desse enredo praticam yoga e se apropriam dos benefícios gerados pela arte da integridade.
A apropriação fornece margem para trivialidade e banalização. O intercâmbio cultural, porém, renova o mundo. Aprende-se uma infinidade com a troca mútua. Um escambo vital: conhecimento e respeito vindos de todos os lados. É preciso estabelecer uma relação simbiótica entre os povos. Todos se beneficiam por meio do compartilhamento de culturas.