Racismo x manifestações racistas
- 13 de outubro de 2015
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- Thamires Mattos
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Casos no futebol brasileiro exemplificam bem as diferenças entre racismo e manifestações racistas. O primeiro é traço de uma cultura, é coletivo. A segunda é fruto desta cultura e individual.
Juliana Dorneles
A discriminação racial é algo recorrente, muito presente na nossa sociedade e, certamente, este não é um assunto novo. Temos um forte histórico de preconceito. Uma cultura que se perpetuou, ironicamente, de forma muito sutil no decorrer da história. Pretensamente, conter atos preconceituosos deste nível deveria ser algo mais simples, visto que foram criadas leis para proteger as vítimas, punindo quem pratica racismo. Mas história é uma senhora idosa que guarda na memória inúmeros casos de mortos que sofreram todo tipo de abusos por causa da cor da pele. Aqui mesmo, em terras tupuniquins.
A primeira regulamentação contra a discriminação racial no Brasil acontece no dia 03 de julho de 1951. A iniciativa ficou conhecida como Lei Afonso Arinos . Porém, as penas para quem cometesse o ato, eram leves, sendo a máxima de apenas três meses de detenção. Apesar de bem intencionada, a nova lei não conseguiu conter de forma eficiente o preconceito. É apenas na Constituição Federal de 1988 que medidas mais drásticas são legitimadas. A lei sofreu duas edições posteriores, mas se mantém até hoje.
O número de ocorrências que envolvem discriminação racial pode até ter diminuído por decorrência das leis, mas não deixou de existir. Frequentemente casos de racismo vão parar nas mídias. Casos protagonizados dentro do esporte são muito comuns. No dia 28 de agosto de 2014, por exemplo, o Grêmio (time de futebol) enfrentava o Santos, no Arena em Porto Alegre pela Copa do Brasil. O time da casa perdia de 2 a 0, gerando certa tensão aos torcedores gremistas. Ao longo do jogo o goleiro do Santos, apelidado de Aranha, se destacava por fazer grandes defesas. A torcida adversária vaiava bastante e dirigia insultos a ele. Aos 42 minutos do segundo tempo o goleiro se revoltou e parou de jogar, pois os torcedores começaram a chamá-lo de macaco, imitar o som do animal e passar a mão na pele. O caso ganhou grande repercussão pois uma câmera flagrou uma torcedora do Grêmio, Patrícia Moreira, gritando “macaco”.
Ao final do jogo o goleiro deu a seguinte declaração aos repórteres: “A torcida xingar e pegar no pé é normal. Mas daí começaram a falar ‘preto fedido’, ‘cambada de preto’, fiquei nervoso, mas fiquei me segurando. […]Isso dói, dói. Não é possível”. Aranha ficou chateado e irritado com a situação. Antes de sair de Porto Alegre ele registrou uma ocorrência na delegacia contra o racismo que havia sofrido.
Muitos torcedores cometeram o ato preconceituoso, mas foi sob os ombros de Patrícia que caiu a culpa. Os holofotes se voltaram a ela, que por consequência sofreu sozinha o resultado do erro de muitos. A gremista perdeu seu emprego, teve sua casa apedrejada e por isso foi obrigada a se refugiar na casa de amigos e parentes. A imagem de Patrícia foi usada como um símbolo racista por uma atitude que, talvez, nem represente quem ela realmente é.
Neste caso, a mídia teve grande influência. O programa Esporte Espetacular (transmitido pela emissora Globo), por exemplo, veiculou uma reportagem expressando tons de indignação. A repórter narrou a história com voz tensa e grave. A música de fundo exprimia um clima pesado. A imagem de Patrícia, com a boca aberta, gritando “macaco” é retratadade forma sensacionalista.
O site G1 (pertencente ao mesmo grupo comunicacional) cobriu o caso com bastante intensidade. Foram mais de 20 matérias falando sobre o assunto. O maior erro deles foi também usar a imagem da torcedora como um símbolo do caso. A reportagem intitulada “Polícia Civil indicia 5º torcedor por injúrias raciais contra o goleiro Aranha” usou a foto de Patrícia como a imagem da reportagem. Porque não usar a foto do 5º torcedor indiciado? Ou uma foto da torcida do Grêmio? A jovem foi, o que chamamos popularmente de “bode expiatório”, aquele que leva a culpa por todos.
A ESPN conseguiu fazer uma cobertura mais completa e imparcial do caso. Como os outros veículos, relatou o ocorrido, mas ao invés de expor apenas a Patrícia, responsabilizou os torcedores do Grêmio que se localizavam atrás do gol pela atitude racista. Além disso estendeu espaço para que o conselheiro Marcos Chitolina apresentasse o parecer do Grêmio sobre esta situação e ao final da reportagem divulgou uma nota oficial do time que alega repudio à ação dos torcedores.
Já no Jornal do Almoço (programa veiculado pela RBS – filial da TV Globo – em Santa Catarina), Tulio Nilman, após mostrar o pedido de desculpas da torcedora, teve uma postura bem humana que foi contra o sensacionalismo que a mídia impôs. “Ela não era a única que estava gritando no estádio. Não foi a primeira vez que se grita isso em estádio no Brasil, e ela foi a imagem que acabou sendo capturada naquele momento e que está servindo de símbolo pra essa luta, que é uma luta brasileira contra o racismo nos estádios. Ela já pediu perdão, pediu desculpas […] Eu acho que o Aranha […] podia ter esse gesto de grandeza e, individualmente, de ser humano para ser humano, perdoar a menina pelo que ela fez”. Tulio mostra uma segunda faceta da história: o lado de Patrícia. A jovem agiu errado sim, mas nem por isso deve ser tratada como a responsávelpelos atos racistas no Brasil. O goleiro Aranha, em entrevistas coletivas, declarou perdão a torcedora. ‘‘Estou desculpando ela, mas infelizmente, por um erro que cometeu, vai ter de pagar[…]”
Alguns amigos negros de Patrícia depuseram a favor dela, provando que ela não é racista. Talvez a emoção do momento, o embalo da torcida, e a tensão da derrota, tenham levado a jovem a agir daquela forma. Aí entra a importância de se estabelecer a diferença entre racismo e manifestação racista. As manifestações são individuais e podem ser representadas por atitudes esporádicas. Já o racismo é uma cultura, portanto coletiva. As manifestações incentivam e sustentam esta cultura racista e a cultura, por sua vez, fomenta as manifestações. A severa punição dada a torcedora leva a ilusória sensação de que o racismo está sendo combatido, porém é apenas uma medida educativa, como muitas outras, que precisa ser tomada. O que a levou a jovem a agir dessa forma vai muito além, tem raízes firmes e profundas no imaginário popular. Fruto de uma colonização de exploração e de governos elitistas e corruptos. Como mudar os frutos destas raízes? Certamente este será um processo tão (ou mais) longo que o que resultou na formação do povo brasileiro.