Quem é a vítima?
- 2 de setembro de 2019
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- Thamires Mattos
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Ao tratar com descaso a fragilidade e angústia vividas pelas vítimas, a cobertura do Caso Eloá possibilitou a romantização do sequestrador. Ele já não era mais gente; era mito.
Ana Clara Silveira e Djuliane Rodrigues
“Deixe o jornalismo para lá: hoje, faremos cinema amador. Apontemos as câmeras para longe dos nossos ideais”. Próxima disso está a cobertura do Caso Eloá. A trilha sonora, captação de imagens complementadas com cortes dramáticos, chamadas e títulos de matéria retiravam do telespectador o sentimento de realidade. Enquanto isso, entregavam nas mãos do agressor o poder de domínio diante de uma nação que o contemplava como vilão de um filme de terror. Ele já não era mais gente; era mito, romantizado pelo término de um relacionamento –, que, podemos dizer com segurança: era abusivo; mas, não a ele.
Eloá Pimentel, de apenas 15 anos, havia acabado o namoro com Lindemberg Alves, que, na época, já tinha 22. Ele não aceitou o ponto final dado pela jovem, e a manteve em cárcere privado dentro da residência da ex, em Santo André (SP), por cinco dias. Além dela, sua melhor amiga, Nayara Azevedo, foi alvo da violência do sequestrador. Eles protagonizaram um dos maiores sequestros da história do estado de São Paulo. Com cem horas de duração, o caso Eloá revela pontos de fragilidade no sistema de negociação da polícia, a inabilidade da justiça e cobertura midiática com ética jornalística questionável. No fim da história, temos a morte de Eloá, Nayara ferida e Lindemberg preso.
Uma postura policial fraca tornou fácil a intromissão da mídia como “solucionadora” de problemas. A audiência barata custeada por um feminicídio ainda deixa brechas para crer que a imprensa abraçou a culpa com tanta ferocidade quando a passividade e lentidão da polícia. É bem verdade que discutir violência contra mulher em 2008 ainda encontrava pouco espaço. Em nenhum momento de intensa cobertura midiática do crime, expressões como “violência contra a mulher” foram utilizadas. Há de se notar que as questões que envolvem o “feminicídio” só se popularizaram em março de 2017 com a inclusão da lei 13.104 no Código Penal entre as modalidades de homicídio qualificado. Ao utilizar o sequestrador como massa de manobra, o crime é romantizado. Isso possibilitou com mais força a construção de uma supervalorização da imagem do homem ferido com expectativas frustradas, e tratou com descaso a fragilidade e angústia vividas pelas vítimas.
Embora um estado democrático apoie a livre circulação de informações, isso não pode interferir no desenrolar de investigações e negociações policiais, em especial se um inocente está sob ameaça. Isso descaracteriza a ética da imprensa, além de definitivamente culpar todos os meios que utilizaram o sensacionalismo nas notícias e transmissões. Os programas televisivos não apenas suavizaram a atitude do agressor como deram-lhe espaço de fala, por meio de entrevistas e tentativas falhas de negociações. Apresentadores conhecidos, como Sonia Abrão e Britto Júnior, protagonizaram cenas de clara interferência e distorção da realidade para o telespectador.
Entrar ao vivo com um sequestrador na tentativa de convencê-lo de seu erro comprometeu negociações e inflou o ego de Lindemberg a ponto de tornar seu crime uma peça de entretenimento. Britto Júnior assegura que a cobertura estava dentro de todos os padrões éticos do jornalismo e ainda acredita ter sido coerente ao escutar ambos os lados da história. Mas, após onze anos, é possível ouvir a versão de Eloá?