Praia dos Ossos: quando a vítima foi julgada pelo próprio assassinato
- 27 de abril de 2022
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Um podcast sobre o caso Ângela Diniz e sua importância para o movimento feminista no Brasil.
Mariana Santos
Um crime acontece na Praia do Ossos e na rádio é feita a seguinte suposição: “Ângela era uma mulher anormal? Empurrou a vítima para o crime?”. A “vítima” citada era, na verdade, Raul Fernando do Amaral Street, ou apenas Doca, um homem conhecido da sociedade que atirou repetidamente em sua mulher, Ângela Diniz, que morreu na hora.
Nas palavras da apresentadora Branca Vianna: “Essa não é só uma história de coluna social, mas não deixa de ser uma história sobre a imprensa. (…) Essa é a história de uma mulher, da morte dela e tudo o que veio depois”.
Idealizado por Branca, que é intérprete simultânea de formação, o Praia dos Ossos foi considerado por muitos um dos melhores podcasts de 2020. Por mais que essa também seja a minha opinião, digo isso com base nas mais de 700 avaliações no Apple Podcasts que tornaram a série 5 estrelas. No Spotify e no Deezer a narrativa também ganhou destaque nas listas dos melhores do ano.
Existem inúmeras possibilidades dentro do jornalismo e, justamente por isso, seria extremamente contraproducente tentar restringir essa produção. Não vou fazer isso. O que pretendo é demonstrar em detalhes o uso dos podcasts como ferramenta jornalística e, para tanto, precisei tomar como exemplo o podcast Praia dos Ossos, a primeira minissérie original da Rádio Novelo.
Um feminicídio do século passado
A construção do podcast tem a difícil tarefa de explicar para ouvintes nascidos em diferentes épocas como a sociedade reagiu a um feminicídio antes que esse termo sequer existisse. Mais do que os fatos ocorridos, era necessário demonstrar de que maneira os absurdos do século passado podem ser presenciados até hoje.
Utilizando recursos emprestados do jornalismo literário, Branca consegue transportar o ouvinte direto para a cena do crime, onde ela e a pesquisadora Flora Thomson-DeVeaux estiveram. O som ambiente dos passos na areia, as ondas, o vento, tudo colabora para a sensação de imersão.
A produção se compromete com a experiência do ouvinte. Por vezes, laudos, notícias e outros documentos da época são lidos no roteiro e imediatamente contextualizados. Não é para menos: o roteiro muito bem escrito por Aurélio de Aragão e Rafael Spínola passou pelo tratamento de Paula Scarpin, que, além de ser jornalista, estudou a teoria da narrativa radiofônica no mestrado.
Arquivos do século passado
A produção do podcast levou um ano e meio e contou com mais de 30 profissionais. Desde janeiro de 2019, foram mais de 60 entrevistados, além dos autos do processo e de centenas de reportagens. A equipe visitou todos os acervos disponíveis para ter acesso aos áudios de entrevistas e reportagens que citassem o nome de cada um dos envolvidos no crime, oferecendo aos ouvintes do podcast o conteúdo estudado em sua forma original.
Por mais que a pesquisa tenha encontrado materiais verdadeiramente úteis, muito do material radiofônico se perdeu com o tempo. Portanto, pedir que um locutor lesse o conteúdo do jornal impresso foi a melhor saída.
Um fato observado é que a imprensa cobriu exaustivamente a morte de Ângela. Logo no primeiro episódio Branca explica que “tinha câmera para receber o corpo da Ângela em Belo Horizonte, tinha câmera dentro da igreja na missa de sétimo dia dela, tinha câmera até do lado da cova no enterro dela, tanto que um dos filhos dela jogou uma pedra no cinegrafista.”
Injustiças do passado
Por mais questionável que possamos considerar a postura adotada, a imprensa parecia apenas saciar o desejo no público que acompanhava cada novo acontecimento como em uma novela. Tudo o que envolvesse o passado da vítima era usado como forma de amenizar a culpa do assassino. Enquanto Doca aos 42 anos era tratado por “mancebo bonito”, a mulher morta era chamada de “prostituta de alto luxo da Babilônia” por Evandro Lins e Silva, advogado do Doca.
O Praia dos Ossos tenta escancarar a incoerência do julgamento por intermédio da ironia, mas também faz questão de explicar cada contradição para os ouvintes menos atentos. Quando Evandro descreve Doca como um “passional” e diz que “o passional tem um talento especial para o trágico”, Branca destaca: “Mas repara que o Evandro não escolhe uma palavra pejorativa para falar desse destino inevitável. Não usa nem uma palavra neutra, tipo “propensão”. Ele usa a palavra “talento”, que é claramente positiva”.
Foram necessários dois julgamentos para que finalmente o réu fosse preso. Em 1979, Doca Street foi absolvido, mas em 1981 foi condenado a 15 anos de prisão, dos quais cumpriu apenas sete.
Durante todo o processo a pergunta central era “como uma mulher desarmada é morta com quatro tiros e vira a vilã da história?” e para entender a complexidade do caso seriam necessários meses de pesquisa, ou então algumas horas escutando o podcast. Apesar das poucas palavras que tenho a minha disposição, vou explicar algumas particularidades do assassinato para justificar a relevância de “cavocar” o passado em busca de mudanças, mas antes é preciso destacar a riqueza do material conquistado através das fontes.
A história contada no presente
As pessoas entrevistadas para a produção do Praia dos Ossos não poderiam ser mais certeiras. É impossível não se emocionar com o melhor amigo de Ângela, Fritz D’Orey, contando como tentou convencê-la a não ir para Búzios. É revoltante escutar a fala dos advogados do Doca e perceber que a opinião deles não mudou desde o julgamento. É triste ouvir sua amiga Ângela Teixeira de Mello explicar que as duas haviam marcado de fazer as unhas quando o crime aconteceu.
A equipe retornou à cena do crime e escutou a história sob diferentes pontos de vista. Moradores antigos contaram sobre a reputação de Ângela e colegas de escola explicaram um pouco da educação que a jovem recebia. Por mais que Ângela não estivesse viva para explicar o que houve, muitas pessoas arriscaram contar a sua própria versão da verdade.
O clímax do podcast chega quando uma fonte completamente inesperada decide dar entrevista: o próprio Doca Street. Quando o ouvinte escuta a voz do Doca pela primeira vez é quase como se soasse familiar. Existe ódio e indignação especialmente direcionados a um homem velho que cometeu um crime há mais de 40 anos.
Branca, exercendo a função de jornalista, precisou colocar de lado toda a opinião que tinha formado ao longo das infinitas pesquisas. Durante o tempo que passou próxima a Doca foi necessário muito cuidado com cada palavra escolhida para que não se formasse uma barreira em volta do idoso.
Em algumas situações a entrevistadora decidiu deliberadamente fazer perguntas ao entrevistado que causaram desconforto, constrangimento e raiva. Essa é uma postura adotada nos raros casos em que a fonte nunca mais precisará ser consultada e quando a intenção é conseguir declarações reveladoras de alguém pouco acessível. De fato Doca nunca mais poderá ser consultado já que que morreu poucos meses após a entrevista cedida ao Praia dos Ossos.
Lutas atemporais
O homicídio de Ângela não foi o primeiro e nem o último, contudo, serviu como divisor de águas para o movimento feminista no Brasil. Enquanto no primeiro julgamento de Doca a população carregava cartazes com frases como “Cabo Frio está com você” e “O povo de Cabo Frio te absolve”, no segundo julgamento o que se tornou atemporal foi o slogan “Quem ama não mata”.
Foi a partir do caso Ângela que a culpabilização da vítima se tornou pauta. Sabemos que nada do que a vítima tenha feito justifica um ato de violência e muito menos um feminicídio, entretanto, em pleno 2022, mulheres são julgadas diariamente pela violência que sofrem.
Os advogados do Doca usaram como defesa o argumento da “legítima defesa da honra”, uma espécie de tentativa de justificar um assassinato sob o pretexto de ego ferido. Pode parecer ridículo para você, mas Branca relembra que algo semelhante aconteceu no caso Mariana Ferrer em 2018. O estilo de vida da vítima foi usado como forma de amenizar a pena do agressor.
Ao contrário de Ângela, Mariana estava viva para ser ofendida repetidamente pelo advogado do homem que a violentou, mas nem toda mulher tem essa “sorte”. Nas palavras da apresentadora: “A história [do podcast] é também sobre o sistema judiciário brasileiro, sobre como nasce uma mobilização, sobre como as mulheres viviam e morriam nesse país, e sobre como elas continuam vivendo e morrendo.”