Oh céus! Oh vida! Oh azar! – Hardy e a autossabotagem
- 1 de dezembro de 2021
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Digo sim a melancolia e ao ócio. Quem realmente impede o progresso é o pessimismo
Ana Clara Silveira
As ideias de moralidade difundidas especialmente no ocidente assimilam produtividade e ocupação como palavras correlatas, senão sinônimas. A preguiça se configura enquanto uma premissa negativa independente do ponto de vista. Diante disso, os diálogos se limitam a considerar a pausa ou contemplação sem resultado imediato como uma perda de tempo e, nesse contexto de produção, o “faço, logo existo” reduz a humanidade às suas entregas profissionais.
O escritor e jornalista, Albert Camus, vai apontar para uma nova perspectiva. Dirá então que “são os ociosos que transformam o mundo, porque os outros não têm tempo algum.” A frase surge como uma fuga aos princípios que estão enraizados na identidade ocidental quanto a qualquer ideal de sucesso. Para Camus, a preguiça deixa de ser palavrão para dar espaço a uma nova forma de criar. Mais do que isso, esse posicionamento empodera outras palavras que devem ser parte daqueles que buscam despertar a criatividade.
Entre elas, a melancolia assume um papel de destaque. Assim como a preguiça, é encarada com olhares tortos de quem não a entende. Convenhamos que há uma linha tênue entre a causa e o efeito dessa sensação, mas há muitos que a utilizam para produzir, criar e se inspirar. O ponto é que a melancolia, assim como contemplação e ócio, não está associada ao pessimismo e, portanto, não utiliza as perdas para projetar falhas futuras. Pelo contrário, ela desperta o desejo de produzir, ainda que partindo de uma dor. Isso é o que a difere da paralisia provocada pelo pessimismo.
O bordão conhecido
Foi esse sentimento que por diversas vezes impediu o progresso de Hardy e, por consequência, seu companheiro Lippy. O bordão “Oh céus! Oh vida! Oh azar!” se repetia entre os fiéis telespectadores do desenho animado. As aventuras do leão otimista e a hiena pessimista enchiam o ambiente de risos e, além disso, as situações enfrentadas por eles captavam a atenção de crianças e adultos. Sempre que alguma dificuldade afligia o personagem Hardy, sua atitude antes de qualquer outra era repetir a expressão de lamento: “Oh céus! Oh vida! Oh azar!”.
Quando lançada em 1962, a animação pouco propunha um diálogo quanto a visão sempre negativa da hiena que, em cada desafio, se condoía. Para Hardy, faltava um tanto de melancolia como subterfúgio para contemplação, ócio e expiração. Tendo em vista que agir depende de decisões colocando de lado a autopiedade e assumindo um compromisso, a hiena precisaria olhar para seus problemas com mais confiança. Seu comportamento não se tratava do ócio descrito por Camus, nem sequer da preguiça associada ao processo criativo, mas de um estado de autopiedade.
É fato que o desenho animado não traduz de maneira integral como as diversas maneiras de autossabotagem podem provocar o insucesso; até porque, em muitas ocasiões a dupla dinâmica surpreendia com sua esperteza. Mas em certo ponto incomoda a lamentação contínua da hiena. Seu estado de melancolia, ao contrário do que poderia, não o aproxima dos sentimentos de coragem ou de movimento. A paralisia prova que o pessimismo é o verdadeiro inimigo da criatividade e ação, mas não o ócio e a melancolia.
A sensação de autopiedade era a principal maneira de sabotagem do personagem. Agir como ele seria como se você passasse a mão na própria cabeça para ocupar um espaço de inutilidade que não lhe cabe. Para todos, os desafios são reais. Mas lamentar-se como Hardy não leva a lugar algum. Fato é: tendo o ócio como fonte de inspiração ou a melancolia, tanto faz. Proibido mesmo é o pessimismo.