O jornalismo de mãos amarradas
- 10 de maio de 2023
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- Theillyson Lima
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Acaso o jornalismo independente é o único que pode realizar o verdadeiro jornalismo investigativo?
Cristina Levano
Acredito que todos em algum momento da vida, mesmo sem perceber, ou saber o conceito, já tiveram contato com o “jornalismo investigativo”. Quem sabe, este texto seja a primeira vez que você lê o termo, mas certamente já deve ter acompanhado alguma matéria ou reportagem especial, escrita nesta modalidade, sendo que, inclusive, ela está presente em filmes como “Todos os Homens do Presidente” de 1976 ou Spotlight: Segredos Revelados” de 2015.
Esses filmes geralmente retratam jornalistas investigativos como indivíduos dedicados e obstinados que enfrentam muitos obstáculos ao longo de suas investigações, incluindo pressão do governo, ameaças de fontes ou até mesmo riscos à sua segurança pessoal. Tudo isso por descobrir a verdade. Um conceito que não está tão longe da realidade, ou sim?
Primeiro, o que é o jornalismo investigativo?
O jornalismo investigativo é um ramo do jornalismo que envolve a busca ativa e rigorosa de informações para descobrir a verdade por trás de fatos e eventos importantes que podem estar ocultos ou desconhecidos. Nesta “especialidade”, os jornalistas se dedicam a investigar em profundidade questões complexas e muitas vezes controversas, como corrupção, fraude, abuso de poder e outros crimes.
Este tipo de jornalismo envolve a coleta de evidências e a verificação cuidadosa das informações obtidas por meio de várias fontes, incluindo documentos, entrevistas e outras fontes de informação, mas seu enfoque, metodologia e impacto é diferente do convencional. Os jornalistas investigativos geralmente trabalham em equipes e podem passar meses ou até anos trabalhando em uma investigação completa para descobrir a verdade por trás de um determinado evento ou situação.
Lamentavelmente o jornalismo investigativo no Brasil enfrenta muitos desafios adicionais que limitam sua capacidade de realizar o trabalho crucial que realiza em uma democracia. Em particular, a concentração da propriedade da mídia nas mãos de um pequeno número de empresas limita a diversidade de vozes e perspectivas na mídia, o que, por sua vez, pode limitar a capacidade do jornalismo investigativo de expor a verdade e a transparência.
De mãos amarradas?
Em muitas mídias brasileiras, os proprietários e anunciantes têm grande influência sobre o conteúdo que é publicado, o que às vezes limita a capacidade dos jornalistas de investigar e expor a corrupção e outros crimes. Isso levou a uma situação em que a publicação de histórias “seguras” é frequentemente preferida a investigações mais aprofundadas e comprometidas.
No Brasil, não existem jornais ou periódicos que sejam diretamente controlados pelo governo, graças à Constituição da República Federativa Brasileira que garante a liberdade de imprensa e proíbe a censura prévia no inciso IX do artigo 5º. Ainda assim, existem veículos de comunicação que, no decorrer dos anos, têm sido acusados de ter ligações com políticos e partidos políticos, o que pode influenciar a linha editorial e a cobertura jornalística.
O interesse de alguns políticos e empresários por ter esse controle das mídias em geral, não é novidade, nem impossível de conseguir, pois existem leis e regulamentações que podem afetar a liberdade de imprensa no Brasil, como a Lei de Segurança Nacional e a Lei de Acesso à Informação. Essas leis poderiam ser usadas para restringir a divulgação de informações ou para punir jornalistas que investigam casos de corrupção ou outras irregularidades.
De acordo com estudos realizados pelo Coletivo Brasil de Comunicação Social, Intervozes, e o Registro Global de meios chamados de MOM – Brasil (Media Ownership Monitor-Brasil), 50 veículos analisados pertencem a 26 grupos ou empresas de comunicação.
Destes, todos possuem mais de um tipo de veículo de mídia e 16 possuem também outros negócios no setor, como produção cinematográfica, edição de livros, agência de publicidade, programação de TV a cabo, entre outros.
Além disso, 21 dos grupos ou seus acionistas possuem atividades em outros setores econômicos, como educação, financeiro, imobiliário, agropecuária, energia, transportes, infraestrutura e saúde. Há ainda proprietários que são políticos ou lideranças religiosas.
Tendo esse tipo de controle sobre o jornalismo brasileiro, como esperar encontrar reportagens investigativas de interesse público com facilidade?
Quem fala do que ninguém fala
De 20 de abril até o dia 3 de maio, resolvi acompanhar o conteúdo da “Agência Pública”, uma agência independente de jornalismo investigativo, que produz reportagens, perfis, podcasts, vídeos, colunas, crônicas, inclusive especiais onde falam sobre situações de políticos.
Confesso que o processo para escrever este texto foi algo complicado devido ao fato de não conseguir achar reportagens da editoria de “investigativo” em veículos que não realizem jornalismo independente para fazer uma comparação de conteúdo, o que me levou a perguntar se por acaso só o jornalismo independente é capaz de realizar o verdadeiro jornalismo investigativo.
Durante essas semanas de análise, encontrei 5 reportagens da Agência Pública que abordavam questões socioambientais, focando nos indígenas, como o “desalojamento de 1.600 invasores de terras indígenas no Pará”, que explicava detalhadamente o que estava acontecendo, como fontes além do comunicado e dirigentes, mas também de pessoas que vinham lutando, e pedindo ao governo uma solução para isso a quase 40 anos.
Grande parte dessas pessoas não foram ouvidas por muito tempo. Vale lembrar uma matéria da Globo que fez a cobertura superficial do assunto, explicando como seria o processo de desalojamento, utilizando pronunciamentos de dirigentes e colocando como herói o governo por conseguir resolver o assunto. Além disso, esquecendo e deixando na superficialidade o fato de que por anos deixaram de lado o pedido e de tudo o que os residentes e donos das terras tiveram que passar para chegar até ali. Por outro lado, outros veículos “conhecidos” nem cobriram o assunto.
Falando da falta de cobertura, outra reportagem que me chamou atenção foi a dos “Ex-presos, que após cumprir pena, são obrigados a pagar multas“. Nela, a agência narra casos de pessoas que mesmo sendo livres e acreditando já ter cumprido a pena, anos depois continuam sendo presos por multas não comunicadas. Isso acontece devido a “pena de multa”, criado inicialmente com o objetivo atingir traficantes de grandes patrimônios e condenados em crimes de “colarinho branco”, como no caso Lava Jato, mas quem terminou sendo punido, para variar, foi a população mais pobre.
No texto, eles detalham o que implica o processo para acabar com essa multa. Sendo assim, esse é um assunto de grande importância para aqueles que passam por situações similares, mas que ninguém mais falou, e que se você decide procurar no Google, dificilmente achará em veículos comuns.
Essas foram algumas reportagens que me marcaram durante esses dias de análise, mas a agência já escreveu reportagens sobre a corrupção em empresas e no governo, problemas de saúde, mau trato no trabalho, etc.
Importante entender que “o silêncio também apoia o crime”, e tristemente, muitos jornais se calam. São poucos os que realmente expõem o que está acontecendo.
Um jornalismo sem grana e em perigo constante
Um dos principais desafios do jornalismo investigativo no Brasil é a falta de recursos. Muitos veículos independentes lutam para obter os recursos necessários para financiar pesquisas sobre histórias de interesse público, livre de ataduras, e terminam dependendo de doações. Isso leva a um declínio na quantidade e na qualidade das investigações jornalísticas, o que, por sua vez, enfraquece a capacidade dos jornalistas de expor a corrupção e outros crimes.
Além disso, os jornalistas investigativos enfrentam um ambiente cada vez mais hostil. Nos últimos anos, houve um aumento da violência contra jornalistas, além de intimidações e ameaças por parte de políticos e outras pessoas poderosas que não querem que suas atividades ilegais sejam descobertas.
Em 2022 houve um aumento de 50% no número de jornalistas mortos em decorrência do exercício profissional ou em acidentes de trabalho. De acordo com o relatório anual Killing the Messenger, divulgado pelo International News Safety Institute (INSI) em parceria com a Cardiff School of Journalism, ao menos 85 profissionais de imprensa de todo o mundo morreram até essa data. Essa situação pode levar a uma diminuição do número de jornalistas dispostos a realizar investigações.
Para um jornalismo investigativo de qualidade
A falta de recursos, a crescente hostilidade para com os jornalistas e a falta de independência editorial são apenas alguns dos obstáculos que devem ser superados para que possa cumprir o seu papel vital no combate à corrupção e outros crimes no país.
Importante aceitar que o jornalismo investigativo é um componente importante do jornalismo de interesse público, pois ajuda a desvendar questões complexas que afetam a sociedade como um todo e podem ter um impacto significativo na vida das pessoas.