
Nem tanto ao céu, nem tanto ao inferno
- 5 de março de 2025
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- Theillyson Lima
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Longe de merecer as 13 indicações ao Oscar, Emilia Pérez também não é a tragédia anunciada pela internet.
Victor Bernardo
É difícil assistir a Emilia Pérez sem julgamentos prévios. A desastrosa recepção mexicana, o resgate das declarações criminosas da protagonista e o fato de que se trata do grande concorrente de “Ainda Estou Aqui” no Oscar certamente afetam a percepção do espectador.
Infelizmente, a maior parte dos problemas se confirma logo na primeira cena. O longa começa com um trio de mariachis mexicanos, vestidos com roupas brilhantes, tocando uma música sobre um fundo preto.
O grupo não tem relação nenhuma com a trama, nem aparece em outro momento. Trata-se apenas de uma tentativa falha e estereotipada de “representar” o México – uma prévia do que seria o filme.
Ainda assim, sejamos justos. Emilia Pérez não é o desastre que a internet fez parecer. Tem pontos positivos, alguns diálogos de qualidade e pelo menos duas boas músicas. No entanto, está longe de merecer um lugar de destaque na principal premiação do cinema mundial.
Representatividade ou estereótipo?
O filme conta a história de Manitas del Monte, um chefe de cartel mexicano que busca a ajuda da advogada Rita Mora para realizar uma transição de gênero. Após esse processo, a trama agora acompanha Emilia Pérez, a ex-traficante que quer se reconectar com a família. Enquanto isso, permeia a descoberta de um novo amor por Emilia, traição, uma ONG de busca por desaparecidos e outras tramas menores.
Parece confuso, e realmente é. O roteiro transita entre feminicídio, transição de gênero, vítimas do tráfico e relacionamento amoroso entre mulheres. Todos são temas relevantes, mas também delicados e complexos. Exigem respeito, pesquisa e profundidade. É inviável falar sobre tudo isso – com o cuidado necessário – em apenas duas horas.
No fim, a história é corrida e superficial. O que deveria ser uma ode à representatividade, se torna uma bagunça, que só reforça estereótipos, especialmente latinos.
Os mexicanos talvez gostassem de assistir a um de seus grandes cineastas, como Cuarón ou Del Toro, abordando o problema do tráfico de drogas e suas vítimas. O erro aqui não é o tema, mas sim a forma como se falou sobre ele.
Emilia Perez não tem atores, diretores ou roteiristas mexicanos, não foi filmado no México e tem um roteiro assinado exclusivamente pelo francês Jacques Audiard (que também é diretor da obra, e sequer achou necessário ir ao país para representar a maior tragédia da sociedade mexicana). Isso constrói uma visão bastante ofensiva de tudo que envolve o país.
Emilia Pérez
Se a representação do México é um erro, a personagem que dá nome ao filme poderia ser o ponto alto da trama. O desejo de Manitas pela transição de gênero é bem retratado, esclarecendo que a personagem sempre se viu como uma mulher, mas não vivia no ambiente adequado para dar sentido a isso. Aqui, ponto positivo, que ressoa com a dificuldade que pessoas trans costumam encontrar para se verem aceitas.
A adaptação de Emilia Pérez à nova realidade também é convincente. A felicidade de viver como si mesma, mesclada à ânsia por se reconectar com a família, ao mesmo tempo em que reconhece a dificuldade disso, certamente é algo com o que a comunidade LGBT+ pode se identificar. A partir desse ponto, no entanto, o roteiro se perde em excessos mais uma vez.
O reencontro da protagonista com seus filhos é confuso, e sua relação com a ex-esposa não faz sentido algum. Emilia age como se fossem grandes amigas, sendo que, em teoria, nunca haviam se conhecido.
A protagonista também parece ainda desfrutar dos privilégios de um chefe do tráfico, inclusive muito dinheiro, ao mesmo tempo em que embarca numa jornada para se redimir de alguns pecados: mais uma vez ao lado de Rita, ela cria uma ONG para auxiliar na busca por desaparecidos vítimas do tráfico.
O comitê internacional de pessoas desaparecidas estima que mais de 100 mil pessoas estão com o status de desaparecimento relacionado a crimes no México. Isso sem contar as milhares de mortes anuais resultantes do tráfico. Essa é uma das maiores, se não a maior mazela da sociedade mexicana.
Tendo isso em mente, o filme sugere que uma pessoa responsável por boa parte desses números possa ressurgir sem culpa, sem pagar por nenhum de seus crimes e usufruindo de todo o dinheiro sujo, e que um pequeno esforço de reparação seria suficiente para que tudo se resolva.
A trama se encerra com Emilia Pérez idolatrada pela população e canonizada, no que soa quase como um deboche da religião mexicana.
Karla Sofía Gascón
Se a construção da personagem de Emilia Pérez apresenta uma dualidade, a atriz que a interpreta cai como uma luva no papel. Karla Sofía Gascón foi do céu ao inferno em poucos dias de campanha pelo Oscar, e estragou o que deveria ser um momento histórico.
Diante do crescimento da intolerância ao redor do mundo, e cada vez mais perseguição aos direitos da comunidade LGBT+, a indicação da primeira mulher trans à categoria de atriz principal tinha tudo para ser memorável. Uma declaração de que a academia estava ao lado da diversidade e contra o preconceito.
Mesmo se não vencesse (e não merece, sua atuação esteve longe das melhores da temporada), Gascón sairia da campanha com seu nome marcado na história. No entanto, ela se revelou a pessoa errada para isso.
Talvez movida pela raiva diante do sucesso de um filme medíocre, a internet desenterrou declarações criminosas da atriz. Chega a ser difícil colocar em palavras, ofensas a inúmeros grupos de pessoas, preconceito contra basicamente tudo e todos. Um vexame.
É irônico e triste que alguém que é parte de um grupo marginalizado se posicione assim. De qualquer forma, a atriz já seguiu a cartilha de “desculpas” do cancelamento on-line, e deve se recolher a um merecido ostracismo.
Ainda assim, é uma pena que um momento tão importante para a luta dessa comunidade fique marcado de forma tão negativa.
Zoe Saldaña
Talvez a única indicação realmente merecida, Zoe está muito bem no papel de Rita, se portando quase como uma protagonista em diversos momentos. Por muitas vezes, seus bons diálogos com a personagem principal salvam algumas cenas de se tornarem maçantes.
Sua performance na canção “El Mal” também é um dos pontos altos do filme, e um dos poucos números do musical que realmente têm uma crítica bem construída. A letra trata da corrupção e injustiça social, expondo a impunidade de figuras públicas que se envolvem em atividades ilícitas e se beneficiam da corrupção.
No fim do filme, após uma tragédia que vitima Emilia e sua ex-esposa, Rita se torna responsável pelas crianças. Uma pequena demonstração de que a cumplicidade entre a advogada e a protagonista foi uma das poucas coisas que funcionaram na trama.
Ainda assim, nada disso é suficiente para sustentar duas horas de muita confusão e muito preconceito. O longa não é um desastre, é só mais um filme eurocentrista, do estilo que o Oscar felizmente vinha ignorando nos últimos anos. Algum erro de percurso o colocou numa posição de destaque na temporada de premiações, mas o implacável tribunal da internet tratou de corrigir o problema.
Nem uma obra-prima, nem um desastre. Depois de todas as polêmicas, que Emilia Pérez assegure o lugar que merece: o mero esquecimento.