Luzes da cidade: a escuridão da deficiência visual
- 3 de abril de 2024
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- Theillyson Lima
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A deficiência visual mostra as partes mais belas e as mais tristes da vida na obra prima de Charles Chaplin.
Cristina Levano
Feche os olhos. Tente ouvir tudo ao seu redor por um momento. Tente caminhar, contar quanto dinheiro você tem no seu bolso, lavar uma louça, ler este texto.
Vivenciar, sentir ou entender o que aqueles que enxergam com o coração vivem todos os dias não é tão simples quanto parece. Como alguém que pode apreciar a beleza de um pôr do sol laranja e vermelho, ou de uma borboleta poderia representar o que é abrir os olhos e não conseguir enxergar mais que escuridão?
Foi na época onde o cinema mudo perdia sua força que Charles Chaplin, ator e diretor americano reconhecido por seus filmes cõmicos e críticos às elites, deixou de lado um pouco seu estilo de filme tradicional. Ele se adaptou às novas ondas do cinema e escreveu, dirigiu e atuou no que seria nomeado como o seu melhor filme: Luzes da Cidade.
Com estreia em 1831, este filme aclamado não só nos brinda uma mistura única de comédia e drama, mas também traz à luz questões profundas. O longa analisa a relação que a sociedade da época tinha com as pessoas com deficiência (PCDs) ou demais desvantagens sociais, desafiando-nos a repensarmos nossos próprios preconceitos.
O melhor filme de Chaplin
A história de Luzes da Cidade gira em torno do vagabundo, interpretado por Chaplin, um personagem carismático e bem-intencionado que se apaixona por uma florista com deficiência visual.
No decorrer da trama, vemos como o vagabundo se esforça para ajudar a florista, que está lutando para sobreviver na cidade grande, enquanto ele mesmo vai enfrentando desafios e situações engraçadas ao longo do caminho.
Uma das cenas da obra mais aclamadas pela crítica foi a do “Encontro”, o momento em que o protagonista conhece a florista. É uma cena simples, mas profunda. É atuada de modo tão natural que, por um momento, parece que as falas entre os dois existem. Esquece-se que este é um filme mudo – sua mente cria o diálogo. A atriz Virginia Cherrill, a florista, narra que passaram semanas rodando essa só essa cena, devido a sua complexidade tanto técnica como emocional.
Continuando com a história, uma reviravolta na vida do vagabundo ocorre quando um milionário se torna seu amigo quando está bêbado, mas não o reconhece quando está sóbrio, criando uma série de situações cômicas e inesperadas.
Voltando à parte romântica da história, após seu encontro, a florista pensa que o vagabundo é alguém da classe alta porque deixou que ela fique com o troco. Paralelo a isso, em vários momentos o vagabundo ganhava dinheiro e pegou emprestado o carro do seu amigo bêbado milionário, itens que permitiam que, durante as saídas com a florista, ele conseguisse aparentar ter dinheiro, assim como ajudá-la a pagar certas coisas.
A florista com deficiência visual, mas capaz
Para entender a representação das pessoas cegas na obra, é essencial considerar o contexto histórico e social da década de 1930. Naquela época, as atitudes em relação às deficiências eram frequentemente marcadas por estereótipos e preconceitos. As pessoas cegas eram muitas vezes vistas como incapazes, dependentes e até mesmo como seres inferiores ou até marcados como “inúteis”, atitudes claramente representadas no começo do filme.
Por outro lado, vemos a atitude do vagabundo. No início, ele não percebe que a florista era cega, e, ao perceber, demonstra compaixão, e solidariedade, ajudando-a com o pouco dinheiro que tinha. Assim, a obra mostra como o acesso à educação e oportunidades de emprego para pessoas com deficiência visual era extremamente limitado, em especial para mulheres.
Chaplin retrata a cegueira com sensibilidade durante o decorrer do filme, reconhecendo e deixando em claro a incapacidade da pessoa cega de ver o mundo ao seu redor, e como isso afeta o seu dia a dia, mas sem colocar a florista como uma pessoa sem valor ou capacidade. No filme, ela não vive de esmolas, mas procura sair junto com sua avó vendendo flores, trabalhando, “dando um jeito” para que seu pequeno negócio não seja atrapalhado por sua falta de visão. Ela consegue definir quando o cliente precisa de troco.
Além disso, sua interação com o Vagabundo desempenha um papel crucial na transformação de ambos os personagens, pois, afinal, é ela quem dá sentido e propósito à jornada do vagabundo. Porém, quando ela recobra a vista graças ao vagabundo, ela percebe ter tido um conceito errado do mundo.
Até um certo ponto, a florista parece acreditar e ver os homens ricos como heróis, mas percebe que nenhum deles teve a atitude bondosa do homem que de fato a ajudou.
Dessa forma, Luzes da Cidade é sátira e uma crítica aos homens da classe alta da época, taxando-os como aqueles que têm as condições econômicas de ajudar aos outros, mas que preferem gastar em festas sem sentido, bebidas, mulheres. Quem tem menos dinheiro, no filme, tem mais empatia pelo próximo.
Os recursos e a deficiência visual
A influência da posição e os recursos econômicos fazem uma grande diferença na prevenção da cegueira e da deficiência visual. De acordo com uma pesquisa da Organização Pan-Americana da Saúde, aproximadamente 80% dos casos de cegueira tratados com antecipação poderiam ser evitados. Além disso, esta condição é significativamente mais prevalente entre pessoas de baixa renda e com pouca instrução que residem em regiões periféricas e rurais, em comparação com os habitantes de áreas mais abastadas.
Para combater esse problema, é fundamental ampliar a disponibilidade de serviços oftalmológicos, especialmente nas áreas menos favorecidas de cada nação, fortalecendo os recursos públicos. O acesso aos cuidados visuais pode desempenhar um papel fundamental na redução da deficiência visual e na correção de problemas refrativos ao longo da vida.
Muitas luzes
É curioso como o título do filme representa claramente o que Chaplin queria expor. Por exemplo, Luzes da Cidade faz referência à atmosfera urbana e vibrante que serve como plano de fundo para a história, retratando a cidade como um local cheio de movimento, energia e, é claro, luzes brilhantes. Essas luzes representam não apenas a agitação e a atividade da vida nas grandes cidades, mas também simbolizam esperança, sonhos e oportunidades.
Além disso, representa o contraste entre a luz da cidade e a escuridão que envolve a vida da florista cega, que terminaria se perdendo na grande cidade devido às dificuldades e limitações que essa cidade de luzes lhe impõem por sua condição física.
Luzes da cidade traz a reflexão que, por trás da deficiência, há indivíduos com sonhos, desejos e capacidades únicas, oferecendo uma representação complexa e multifacetada das pessoas cegas, desafiando estereótipos, promovendo a empatia. Essa mensagem atemporal continua a ressoar até os dias de hoje, lembrando-nos da importância de reconhecer a humanidade e a dignidade de todas as pessoas, independentemente de suas habilidades ou limitações físicas.