Limite – e respeito – é bom e todo mundo gosta
- 16 de agosto de 2017
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- Thamires Mattos
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Proibir alguém de usar um objeto ou símbolo pode ser talvez até mais invasivo do que a própria exploração cultural. Se não invasivo, no mínimo seria hipócrita. Vai ter branca de turbante, sim. Vai ter vegano comendo feijoada, sim. Vai ter jazz tocando no meu spotify…
Ana Flávia da Silva
Meu pai é filho de imigrantes alemães, minha mãe, filha de uma polaca com um descendente de índio. Meu irmão mais velho é filho de outro pai, descendente de negros que vieram para o Brasil durante a escravatura. Sou branca. Vim do sul do país e hoje moro em São Paulo. Minha melhor amiga é do Pará, somos uma junção de extremos e culturas diferentes. Em minhas veias corre sangue europeu, mas também indígena. O meu sotaque costumava ser cantado, hoje falo “oxente”. Minhas roupas variam de uma calça jeans e moleton, para um vestido estilo indiano e uma sandália que me deixa com uma aparência meio “goodvibes”, como já diriam meus amigos.
Sou mistura de costumes, gostos e nacionalidades. Sou miscigenação. Uma mescla de cores, ideologias e até mesmo de cultura. Você também é, mesmo que talvez tente negar através dos olhos claros e do cabelo loiro – sei que em suas veias corre sangue africano. Ou mesmo que você seja negro de nariz largo – em suas veias existe sangue europeu. Isto é Brasil.
Ao descobrir que minha pauta desta edição era sobre a tal da apropriação cultural comecei a pesquisar. Preciso confessar que ao ler o primeiro texto sobre o assunto tive preguiça de continuar. Relembrei o caso de Thauane Cordeiro, de Curitiba, que usava um turbante por conta do câncer e foi abordada por mulheres negras que a repreenderam pelo uso do acessório. A polêmica foi longe. Racismo, ignorância, desrespeito. Inúmeros são os termos – pejorativos – usados para definir o comportamento da garota branca que se apropriou da cultura negra. A doença não era desculpa para se apropriar de um símbolo de luta e empoderamento, disseram os defensores.
Ao procurar pela definição do verbo apropriar tive que concordar que a palavra causa certa confusão para aqueles que procuram entender o tema. Traz a impressão de ser algo invasivo e até mesmo grosseiro. Contudo, ao pesquisar novamente, encontrei os sinônimos e eles me fizeram repensar. Apropriar pode ser: tornar adequado, ajustar, casar e até mesmo harmonizar.
Olhando por este ponto de vista, me pergunto: é possível haver harmonia entre duas culturas? Volto então, a toda mistura que existe em mim e concluo que sim. Em um país como o Brasil, seria impossível não ocorrer a apropriação cultural. O mundo é feito destas misturas. Com o passar do tempo, povos se encontram, se adaptam, se moldam, e até mesmo formam novas culturas a partir de sua junção. Isto é apropriação, casar e harmonizar coisas diferentes.
Expropriação ou apropriação?
Eis aí um problema. O que é, então, esta tal de apropriação a qual tanto criticam? Acredito que o termo apropriação cultural deveria ser revisto quando usado para descrever o fenômeno negativo citado pelos militantes e defensores das minorias. Pela definição já vista da palavra, talvez exista um equívoco em sua utilização.
O acadêmico Richard Rogers divide a definição de apropriação cultural em quatro lados: intercâmbio cultural, dominância cultural, exploração cultural e transculturação. Tal definição explicaria os equívocos ocorridos em torno da apropriação. Em primeiro lugar, o intercâmbio cultural é entendido como uma troca de costumes, junção de duas culturas ou mais. Em resumo, é algo benéfico já que há apenas trocas, nenhum tipo de exploração ou desrespeito com o outro. A segunda definição é a de dominância cultural onde há uma cultura dominante e outra subordinada. Isto não é algo maléfico, necessariamente. É um processo natural onde uma cultura se torna maior e mais forte que outra e consequentemente a menor adota seus costumes. A quarta definição é a de transculturação, onde há uma fusão ou hibridismo entre elementos de duas culturas – ainda nada maléfico. A terceira definição, na qual deixei por último propositalmente é a exploração cultural que ocorre quando a cultura dominante passa a utilizar um elemento da cultura subordinada e banaliza tal elemento tirando sua significação primária. Encontro aqui a causa das revoltas favoráveis a revolta das minorias e aí então, dou-lhes razão – em partes.
Dou-lhes razão ao reivindicarem respeito por seus símbolos, ao buscarem o empoderamento e o reconhecimento que desejam. Contudo, mesmo uma luta por direitos exige limites. Posso ser suspeita a falar sobre o uso de turbantes, por exemplo, mas também possuo minhas crenças e costumes e espero respeito por eles. Ainda assim, cito a missionária Ruth Catala – mulher, negra e estrangeira – em um de seus vídeos onde fala sobre a apropriação cultural. “As melhores lutas são as que carregam dignidade e honra. A partir do momento em que nossas estratégias de guerra começam a ferir outras pessoas e sua liberdade, então é hora de reavaliarmos nossa forma de combater o racismo, o preconceito e a escravidão”.
Repito: até mesmo uma luta por direitos exige limites. Ao olhar pela ótica de Rogers, fica mais fácil enxergar a linha tênue entre o que é maléfico e benéfico dentro da apropriação. A partir deste momento a luta se torna mais justa, uma vez que deixam de existir extremismos – onde até comer uma simples feijoada vegana se torna um caso insultante de apropriação cultural, por exemplo.
Proibir alguém de usar um objeto ou símbolo pode ser talvez até mais invasivo do que a própria exploração cultural. Se não invasivo, no mínimo seria hipócrita. Militantes que lutam pelo empoderamento e reconhecimento das minorias também lutam em favor da liberdade, e é justamente isso que sua luta – sem limites – pode tirar dos pertencentes a outras culturas.
Vai ter branca de turbante, sim. Vai ter vegano comendo feijoada, sim. Vai ter jazz tocando no meu spotify, sim. Sou branca, tenho amigas negras e assim como elas se vestem como eu, posso me vestir como elas. Não há desrespeito. Há um intercâmbio cultural, há apenas uma continuidade de um processo que já é constante desde que o mundo é mundo. Sempre existirá troca, reformulação e remodelação de costumes. Esta é a graça: compartilho o que sou e tenho um pouco de outros em mim.