A hipocrisia do país miscigenado
- 16 de agosto de 2017
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- Thamires Mattos
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Negar a existência da apropriação cultural só é possível para pessoas que se recusam a admitir que o uso deliberado de qualquer elemento que represente a luta de um povo outrora dominado acaba por refletir a banalização de tudo o que os outros povos são
Tábbta Rocha Morais
O debate a respeito de apropriação cultural tem se tornado cada vez mais confuso conforme o tempo passa e as pessoas se sentem pressionadas a escolher um lado. A ideia de haver tantas pessoas a favor de determinado comportamento e tantas outras condenando a mesma prática, me faz pensar que os dois lados têm seus pontos certeiros, mas também, seus equívocos.
Pensemos o seguinte. A cultura dominada tem seus atributos, crenças, símbolos, elementos característicos de sua história e de seu povo. No entanto, ao usar esses símbolos – quer sejam objetos ou não – expô-los seja por qualquer motivo, os grupos minoritários têm sua atitude hostilizada e vista com olhos preconceituosos pela cultura que historicamente tem a posição de dominante. A questão então é: por que a cultura dominante agora tem usado as mesmas coisas como sendo tendência para o mundo da moda, como aparatos que passaram a representar elegância e glamour? Qual o sentido de desprezar algo e depois usar como se fosse a coisa mais linda que poderia ter existido? A resposta é simples e é também uma verdade dura demais para a sociedade aceitar facilmente: hipocrisia!
O debate a respeito da tão pouco entendida apropriação cultural, trata na verdade sobre a hipocrisia dos habitantes desse planeta inteiro. De todos os lados. Meu objetivo não é, de maneira nenhuma, soar como extremista, mas apontar a verdade mais subestimada pelos brasileiros nos últimos tempos. As sociedades, comunidades, grupos sociais, têm características específicas que os distinguem dos demais. E por características também estão inclusas as crenças, os símbolos, as danças, os traços físicos, e vai para aspectos que podem até parecer simplistas como tecidos, cores, objetos, palavras.
Agora, eis a verdade: apesar de ser o país da miscigenação, o valor dessas características perdura para cada indivíduo que professa sua cultura, e não é possível apropriar-se dos significados de outras pessoas sem entendê-los. Falo significados porque não se trata apenas dos objetos, mas do que eles representam.
Essas características carregam importância histórica, valores religiosos, relevância que só pode ser completamente compreendida quando toda essa sociedade hipócrita aceitar a seguinte verdade: a apropriação cultural acontece de uma cultura dominante para uma dominada.
Os privilegiados
Toda a questão da apropriação cultural pode parecer “mimimi” para quem não entende que existe sim, em pleno 2017, um abismo assustador entre os grupos sociais. Esses grupos que estão no topo não aceitam que são privilegiados e que podem estar se apropriando de alguma cultura supostamente subordinada. Mesmo assim, por mais que não aceitem, eles vivem em uma sociedade que os beneficia. E com os menos favorecidos acontece, simultaneamente, o oposto.
O preconceito, assim como os privilégios, são delegados desde cedo em crianças que nascem e crescem com a ideia de que precisam ser mais fortes porque o mundo é cheio de hostilidade
Está aí um dos principais fatores do problema. Tudo o que os grupos sociais marginalizados sofreram no passado e ainda sofrem hoje, passa a ser considerado trivial quando suas lutas, suas reivindicações são minimizadas todos os dias por pessoas que dizem usar os símbolos da resistência de outros só porque é tendência.
A questão da resistência
O debate a respeito da apropriação cultural é, na verdade, falho em muitos aspectos. É superficial e normalmente não aborda todas as nuances que precisam ser destrinchadas para se fazer entender que a apropriação é uma questão social que envolve muito mais dor, preconceito e abuso e discriminação do que queremos admitir. Uma das partes do debate que tem sido frequentemente deixada de lado é o motivo dos representantes da cultura dominada insistirem tanto na importância dos elementos que representam suas culturas.
Para compreender essa importância, é necessário recordar alguns acontecimentos do passado, e já que a cultura africana é uma das que mais estão “em alta”, vamos pensar no momento histórico que todos se aliviam de ter ficado para trás: a escravidão dos negros africanos no Brasil.
Nem vou entrar no mérito da violência, mas, é de conhecimento geral que os negros vinham da Africa apenas com a roupa do corpo. Antes mesmo de deixarem a costa da África, eles eram diversas vezes obrigados a dar voltas em torno de árvores para que suas culturas e histórias ficassem com ali, com aquelas árvores. Chegando aqui eram proibidos de realizar qualquer tipo de manifestação que remetessem às suas culturas de origem. Recebiam nomes católicos quando chegavam, tinham seus cabelos raspados – exatamente porque os dominadores sabiam da importância dos cabelos para os negros –, eram proibidos de tocar tambores e até de falar em seus idiomas originais.
A cultura afro foi intencionalmente apagada da mente dos negros. Esse esvaziamento cultural levou tempo para ser revogado. Custou esforço, preconceito, discriminação, implicância que vários negros tiveram que sofrer, resistindo, declarando seu orgulho por serem negros, africanos, ex-escravos, afrodescendentes.
Sendo assim, não restam dúvidas de que pleitear elementos culturais – carregados de significado e simbolismos –de determinados grupos não quer dizer declarar posse sobre a cultura. Mas com certeza significa que essas reivindicações são baseadas em contextos históricos que parecem estar sendo enterrados pela enxurrada de discursos capitalistas que defendem o uso livre e discriminadas de coisas que, para outros, é tão importante. Dread, turbante, cabelo trançado, batuque de tambor, tecido colorido, pode parecer só mais um aparato simples da cultura do outro, mas têm níveis de importância diferentes quando usados por uma pessoa branca e por uma negra.
Negar a existência da apropriação cultural só é possível para pessoas que se recusam a admitir que o uso deliberado de qualquer elemento que represente a luta de um povo outrora dominado acaba por refletir a banalização de tudo o que os outros povos são.
Dominados ou dominantes, são povos diferentes, e no país da miscigenação, não respeitar a diferença dos povos, suas caraterísticas é hipocrisia demais para dar conta.