Hipersexualização do anime uma questão de cultura, machista
- 20 de setembro de 2023
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- Theillyson Lima
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Personagens femininas criadas e controladas pelo fanservice.
Cristina Levano
Anime, palavra que surgiu da abreviação de animation (animação), é amplamente reconhecida em todo o mundo para descrever uma das modalidades na mídia visual japonesa. Com o tempo este “gênero” evoluiu e abrange uma longa gama de estilos, subgêneros e temas, desempenhando um papel significativo na percepção que o mundo tem da cultura japonesa e internacional.
O interessante é como grandes mundos podem sair da cabeça de grandes mangakas (criadores de mangás, que inspiram animes) da mídia japonesa. Mundos impossíveis e impressionantes em muitas ocasiões totalmente diferentes aos nossos, mas ao mesmo tempo que não deixam de ser um reflexo dos problemas que a sociedade, em especial a japonesa, enfrenta todos os dias, como a desigualdade, machismo, entre outras coisas, o que nos leva ao ponto deste texto, a hipersexualicação dos personagens no anime.
A hipersexualização no mundo do anime, em especial das personagens femininas, é uma situação que não apenas persiste, mas também parece se ampliar com o passar do tempo. Quem acompanha este gênero está ciente disso. “Mas é ficção, é óbvio que as coisas que aparecem ali não vão ser realidade”. Mas qual é o limite? Por acaso não vale a pena analisar a repercussão que este tipo de conteúdo tem na sociedade?
Desnecessário
Uma das manifestações mais perturbadoras da sexualização no anime é a hipersexualização sistemática de personagens femininas, que são retratadas de forma diferente dos homens. Na maior parte das vezes acontece nas séries, nas quais são frequentemente retratadas com roupas que mal cobrem seus corpos, em poses provocantes, e com quadris e seios desproporcionalmente grandes. Em algumas ocasiões estes chegam a ser maiores do que o corpo mesmo.
Podemos perceber isto na maior parte das séries animes, desde Shonens (para meninos) e Seinens (para jovens) até Isekais (fantasia). Por exemplo, na série One Piece, temos personagens como Rebeca, uma gladiadora, mas que ao invés de estar super protegida com uma boa armadura, parece usar um biquíni malfeito, uma espada e um escudo para lutar. Definitivamente a vestimenta não era apropriada para a luta, pois deixa a gladiadora desprotegida e inerentemente exposta.
De igual maneira, embora a sexualização de personagens femininas seja mais prevalente no anime, também é importante reconhecer que personagens masculinos podem ser sexualizados, mas em menor grau. Personagens masculinos, semi adultos, especialmente em séries shonen, podem ser desenhados com músculos exagerados e trajes ajustados, seguindo padrões de beleza masculina.
Como Jotaro Kujo, de “JoJo ‘s Bizarre Adventure”, cujo corpo musculoso e roupas justas destacam uma forma diferente de sexualização no anime. No entanto, a diferença está em que a sexualização de personagens masculinos geralmente não é tão central ou sistemática quanto a de personagens femininas, e os personagens masculinos têm papéis mais substanciais na história, além de só aparecer para satisfazer ao fanservice (entregar no produto audiovisual o que os fãs ou o público alvo querem ver).
Assim como no caso de Rebeca em One Piece, na maioria das vezes essas representações não têm como objetivo contribuir a narrativa ou nem são parte do desenvolvimento dos personagens, o seu único fim é satisfazer uma audiência, que de alguma forma, espera que este tipo de conteúdo seja normal e aceitável. Cenas de fanservice são inseridas gratuitamente, o que é lamentável, pois no final se transforma em personagens complexos e interessantes em objetos de desejo, acabando por completo sua profundidade e individualidade.
Como o caso de Robin e Nami, do mesmo One Piece, que nas primeiras temporadas, tinham uma aparência física, menos exageradas, mas que no transcorrer da série foram hipersexualizadas. Algumas pessoas justificaram a mudança dizendo que “é o processo de desenvolvimento”, mas esse “desenvolvimento” foi super exagerado, as vestimentas, tudo, era realmente desnecessário.
Quando a sexualização é usada como um ponto central da caracterização, fortalece estereótipos de gênero, retratando as mulheres como sedutoras ou subservientes em vez de personagens complexas com motivações e desenvolvimento de personagem significativo. Tudo isso contribui com a objetificação das mulheres na sociedade, promovendo a ideia de que seu valor está ligado à sua aparência e apelo sexual.
Normalizando o errado
Uma coisa leva a outra, de uma certa forma essa hipersexualização dos personagens femininos leva a outro dos pontos a ser criticado no anime, a normalização de condutas inadequadas como o acoso e pedofilía. Existe uma linha tênue entre atração e acoso, ação que muitas vezes é condenada em algumas séries, ou normalizada em outras com a desculpa favorita dos criadores: o “alívio cômico”.
Estas condutas muitas vezes passam escondidas até em séries Kodomomuke (feito para crianças). Um exemplo é o personagem Brock, de Pokémon, que sempre está correndo atrás das policias (com minifralda), enfermeiras ou qualquer menina que ele ache linda. Mas em várias ocasiões a atitude dele passa da atração ao acaso, pois as persegue, e quase sempre recebe um tapa na cara (condenam a ação).
Já em outros casos mais descarados, como em Dragon Ball (outra série assistida na sua maioria por menores), se apresenta um perfil de assediador pervertido superior ao previamente visto com Muten-roshi, que é um idoso que em mais de uma ocasião rompe com o limite físico.
E tem outros exemplos, como Meliodas dos 7 pecados capitais, que no primeiro episódio e em toda a série se aproveita de que sua co-protagonista Elizabeth (personagem hipersexualizada) é alguém submissa para tocar seus seios. A pior parte é que a diferença dos outros exemplos, o resto de personagens não fazem nada. Inclusive tem outras personagens femininas tem inveja da Elizabeth, quem vale a pena ressaltar tem 17 anos.
Um estudo do governo japonês em 2015 é a prova clara do impacto negativo da normalização desta conduta. Este levantamento revelou que 1 em cada 15 mulheres foi violada ou forçada a manter relações sexuais. Ele acrescenta que 3/4 das vítimas de violações afirmaram nunca ter contado para ninguém e apenas 4% denunciaram o fato na polícia, informação divulgada pela advogada Yukiko Tsunoda, especialista em delitos sexuais, em uma entrevista de imprensa.
“As vítimas são reticentes a denunciar a violação porque querem resguardar sua privacidade ou por temor a perder seus empregos”, assegurou Tsunoda.
Além disso, como os personagens no anime frequentemente envolvem personagens jovens, dependendo do gênero é possível encontrar representação sexualizada desde adolescentes até crianças (Lolis, que tem de 9 a 14 anos), algo perturbador que não deveria encontrar espaço em qualquer forma de mídia.
Isso não apenas normaliza a pedofilia, mas também contribui para a exploração sexual infantil, um crime horrível que deve ser combatido veementemente. É inconcebível que a indústria do anime, que tem uma base de fãs ampla e diversificada, continue permitindo a exploração de personagens jovens em cenas de natureza sexual.
Cultura machista
Se a hipersexualização no anime é algo que está ERRADO com todas suas letras, por que com o decorrer do tempo ao invés de melhorar, parece piorar? É importante lembrar que Japão é um país individualista e machista, porém, a maior parte dos animes são criados para esse público, o que explica, porém, não justifica.
Começando pelo fato que o único gênero de anime criado para mulheres é o shoujo (destinado ao público feminino adolescente e jovem adulto). A grande parte destas produções apresentam aos homens como pastelitos, frios mas super cavalheiros, um clássico de telenovela. São lindos, ricos, quase sempre vivem sozinhos, têm problemas familiares utilizado muitas vezes usado como justificativa para sua toxicidade, e seus comportamentos violentos. Dessa forma, normalizam a degradação feminina, afinal, retratá-las como objetos não é um problema pois é uma “questão de cultura”.
A sexualização no anime não está confinada apenas à ficção; ela também tem um impacto na percepção social e nas atitudes em relação ao gênero na vida real.
Depende de cada um
O anime pode ser um meio de expressão poderoso e pode ser uma força positiva na sociedade quando usado de maneira responsável e respeitosa. Por isso, é importante fazer escolhas éticas, não aceitando condutas inadequadas e muito menos promovendo a que crianças e jovens, que estão em formação, e que são o futuro da sociedade consumam este tipo de conteúdo, o que pode atrapalhar sua percepção do que é correto.
Conforme uma pesquisa realizada por Amanda Annunciato Lara Silva, e publicada pela UNIFESP, em 2020, “o entretenimento pop audiovisual com certeza forma comunidades, faz parte da educação cultural e de valores morais e éticos que vão interferindo gradativamente na sociedade”.
O problema é que a animação japonesa muitas vezes sexualiza seus personagens sem considerar que posteriormente será conteúdo consumido por pessoas em estágios de formação cognitiva.
Os criadores e estúdios deveriam assumir a responsabilidade de criar conteúdo que respeite a dignidade e a integridade de todos os personagens, independentemente de seu gênero ou idade. Os espectadores também têm um papel a desempenhar, exigindo narrativas mais maduras e respeitosas, e apoiando obras que desafiam as normas prejudiciais que dominam a indústria. O objetivo é garantir que o anime evolua para um meio mais inclusivo e respeitoso para todos.