Fofoca: desrespeito ao jornalismo
- 1 de novembro de 2023
- comments
- Theillyson Lima
- Posted in Debate
- 0
Nem todo fato que atrai o interesse de muita gente é notícia.
Victor Bernardo
“Preta Gil diz que foi traída por sete meses”, “Quem é Mariana Maciel, bailarina flagrada aos beijos com Luísa Sonza?”, “Rico Melquiades faz cirurgia após ser julgado de feio”. Essas foram algumas das manchetes que encontrei entre os dias 17 e 18 de outubro, navegando por alguns minutos pelo UOL, um dos maiores portais de jornalismo do Brasil. Fiz questão de ler as matérias antes de formar uma opinião concreta, mas minhas suspeitas se confirmaram: pouco ou nada daquelas informações tem alguma utilidade para quem as lê.
Isso, claro, não é exclusividade do UOL. Diversos portais têm editorias especializadas em conteúdo sobre famosos, realities, novelas, etc. F5 na Folha de S. Paulo, E+ no Estadão, Pop na CNN, entre outros. Essas pautas, de maneira geral, se resumem a narrar um fato curioso ou potencialmente polêmico da vida de alguém que seja famoso. Com certeza geram muito interesse e engajamento, mas tenho certa dificuldade em aceitar que isso seja jornalismo.
Em tempo: não tenho nada contra quem escreve ou consome fofoca ou conteúdo semelhante. Se existe interesse, com certeza faz sentido escrever esse tipo de texto. A discussão aqui é até que ponto eles devem ser tratados como jornalismo, e quais os problemas éticos com isso.
O que é jornalismo?
Faz sentido começar esse debate entendendo melhor o que é o jornalismo e quais as responsabilidades do jornalista. Essa tarefa não é simples, e as opiniões sobre isso são divergentes. Para tanto, vamos nos basear no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros e em alguns teóricos da comunicação.
O Código estipula como um dos deveres do jornalista “divulgar os fatos e as informações de interesse público.” O termo “interesse público” parece um pouco vago, mas alguns teóricos nos ajudam a compreendê-lo. O jornalista e Sociólogo Muniz Sodré, por exemplo, destaca o impacto e relevância na sociedade como características fundamentais da notícia. Outros autores, como Felipe Pena e Mauro Wolf, destacam a necessidade do conteúdo atingir e ser relevante para muitas pessoas. Ainda, o Código de Ética proíbe a divulgação de informações de caráter sensacionalista.
Ou seja, um dos pilares do produto jornalístico é sua relevância para a sociedade, como uma utilidade pública. Nesse aspecto, nem todo fato que gera interesse em muita gente é notícia.
Além da teoria
Tudo pode parecer vago quando se trata apenas de teoria. No entanto, a ética jornalística tem, na prática, o papel de proteger tanto o repórter quanto a fonte. Além de estipular o que é notícia, ela define qual a conduta correta do jornalista diante de um fato. E isso, muitas vezes, também é um problema no chamado “jornalismo de fofoca”.
Em 2022, um caso envolvendo o jornalista Léo Dias, do portal Metrópoles, e a atriz Klara Castanho repercutiu nas redes sociais.
Tudo começou quando a apresentadora Antônia Fontenelle disse que “uma atriz” havia engravidado e entregue o bebê para adoção. Um mês antes, o blogueiro Matheus Baldi já tinha ventilado a história, dando a entender que a atriz em questão era Castanho.
Surgiram, então, indícios de que Léo Dias teria sido o responsável por espalhar a informação nos bastidores da indústria de celebridades, o que ele admitiu posteriormente. É aí que está o maior problema. Cada um que julgue as ações de Fontenelle e Baldi de acordo com sua régua moral. Mas, quando um jornalista formado entra na história, é seu dever seguir o Código de Ética da profissão, o que definitivamente não aconteceu.
O caso, por fim, resultou em uma queixa-crime por parte da atriz contra Dias. Em uma carta aberta, ela também fez questão de destacar como foi difícil assistir às especulações criadas em torno de sua história por conta da mídia.
Enquanto o jornalismo brasileiro contribuía para a exposição da vida privada de uma mulher vítima de violência, a Suprema Corte dos Estados Unidos, na mesma semana, revogava a decisão que por décadas garantiu às mulheres o direito ao aborto. Parece uma ironia do destino, e me faz questionar até que ponto o jornalismo tem cumprido seu dever de defesa dos direitos humanos – inclusive o direito das mulheres.
Esse é apenas um exemplo, mas assuntos privados que não dizem respeito ao público costumam ser tratados em “notícias” sem nenhuma consideração pela vontade das pessoas envolvidas. O desrespeito com a fonte é quase regra no jornalismo “especializado” em fofoca.
Qual a solução?
Como já disse, o ponto aqui não é criticar quem se interessa por esse tema. É inegável que a cultura de celebridades faz parte do nosso dia a dia. A internet trouxe a possibilidade de acompanhar de perto a vida de nossos ídolos e interagir com famosos como se falássemos com amigos. Cada vez mais, há interesse em saber de tudo que acontece na vida dessas pessoas. Prova disso é a proliferação de perfis de fofoca em diversas redes sociais.
O que proponho não é a extinção do conteúdo de fofoca, mas que ele se restrinja ao espaço que lhe cabe. Um bom exemplo é a proposta do Grupo Globo, que separa g1 (portal de notícias) e gshow (portal de entretenimento), ao invés de tratar esse tema como uma editoria jornalística.
Produtos informativos que querem ser levados a sério não podem se dar ao luxo de publicar matérias fúteis ou mal apuradas. Principalmente, não podem permitir conteúdos irresponsáveis que afetam diretamente a vida de alguém, contrariando a ética da profissão.
Basear um conteúdo unicamente no anseio por cliques e compartilhamentos é um desrespeito ao leitor, à fonte e, especialmente, ao jornalismo.