Era dos soldados que chumbam
- 30 de outubro de 2019
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- Thamires Mattos
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No Brasil, o fogo contra fogo é um discurso legitimador da violência, porque, quando pessoas despreparadas carregam armas, inocentes morrem
Thaina Reis
Era manhã de um domingo como outro qualquer em Guadalupe, no Rio de Janeiro, mas tudo estava prestes a mudar. No carro, uma família seguia para um chá de bebê, enquanto disparos desviaram seu caminho para sempre. Não foram três nem quatro tiros. Foram 80. 80 vezes que um filho de sete anos viu o rechaçar de balas enquanto seu pai era fuzilado. O músico Evaldo Santos Rosa foi alvejado por militares do exército no dia 7 de abril de 2019. Em meio ao caos, sua mulher, já viúva, gritava socorro aos militares que continuavam a atirar.
No dia seguinte, a notícia já era capa de muitos veículos de comunicação. O caso chocante capturava leitores, e cada portal ou jornal enfatizava detalhes diferentes. O G1 informou que 9 dos 10 militares envolvidos foram presos. De acordo com o delegado responsável pelo caso, “tudo indica” que o exército fuzilou o carro de família por engano. Eles confundiram o automóvel do músico com o de assaltantes, e começaram os disparos. A reportagem esclarece que a perícia da Polícia Civil não encontrou nenhuma arma de fogo dentro do carro em que a família estava. Quase uma semana após o falecimento de Evaldo, o presidente Jair Bolsonaro lamentou a morte do cidadão, mas afirmou em um evento em Macapá (AP) que o “exército não matou ninguém”.
A apuração do G1 constata que a família estava em um carro branco. O veículo dos assaltantes que PMs procuravam havia passado logo antes e era da mesma cor, de acordo com testemunhas. Ao final do texto, o portal ainda acrescenta que na madrugada de 6 de abril, um rapaz de 19 anos foi morto durante uma blitz do Exército a 11 km do incidente que envolveu Evaldo Rosa. Christian Felipe Santana estava na garupa da moto com um amigo, que havia tentado fugir da blitz, o que provocou a reação dos militares. Segundo o sobrevivente, que conduzia a moto e também foi baleado, um dos soldados disse que o tiro acertou o jovem porque o fuzil “estava torto”, e ele queria acertar o pneu. A estrada do Camboatá foi palco para outro incidente envolvendo armas de fogo em 19 de outubro: uma motorista de Uber foi alvo de bala perdida. Levada às pressas para o hospital, Danúbia Lima não sobreviveu aos ferimentos. A guerra travada entre policiais e/ou bandidos deixa mais uma vítima no Rio de Janeiro.
A revista semanal publicada pela editora Globo, Época, realizou uma grande reportagem do caso dos 80 tiros. A narração começa com uma descrição da cena: a viúva Luciana dos Santos Nogueira abre o álbum de fotos do casamento dela e de Evaldo. As representações e os detalhes do dia do ocorrido são de emocionar qualquer um. A matéria conta a histórias das vítimas desta tragédia. Além de Evaldo, o catador de latinha Luciano Macedo, que correu para socorrê-lo, levou três tiros nas costas durante a tentativa de resgate. Uma semana depois, morreu. A reportagem da Época acaba por trazer detalhes de sofrimento, dor e saudade. É de revirar o estômago.
Ao narrar o mesmo caso, a Folha de São Paulo menciona que o Comando Militar do Leste noticiou o flagrante de assalto pela Patrulha do Exército. Além de enfatizar que esse veículo e o de Evaldo eram da mesma cor, a reportagem acrescenta uma informação importante: o modelo do automóvel não era o mesmo. Até a marca era diferente.
16 dias após a punição dos policiais envolvidos (oito de abril), o Estadão publicou a seguinte manchete: “STM solta 9 militares dos 80 tiros contra músico no Rio”. A reviravolta no caso ocorreu após 11 ministros do Supremo Tribunal Militar (STM) votarem pela liberação dos envolvidos.
Já o jornal diário espanhol El País expõe outros pontos que não foram abordados por veículos nacionais, como um vídeo feito por uma testemunha do caso. Nas imagens obtidas, ouvimos os disparos e comentários do homem que registrou a ação: “O exército acaba de matar uma família agora”, “pegaram os caras errados, os dois já foram”, entre outros. Em outro vídeo, a mulher de Evaldo, desesperada, se revolta. “Eles nem esperaram, eles mataram o meu esposo”, declarou. O El País continuou a cobertura do caso até a despedida dos familiares no enterro do músico. Indignados, parentes e amigos protestaram em sua homenagem com bandeiras do Brasil manchadas de sangue.
O site de notícias UOL apurou as informações da ministra do STM Maria Elizabeth Guimarães, que analisou o pedido de habeas corpus para os militares. O laudo oficial aponta que foram disparados mais de 200 tiros na ação do Rio de Janeiro. Desses, 83 atingiram o carro.
Bala perdida, 80 tiros por engano, policial confunde guarda-chuva com fuzil, celular com arma. 111 tiros em 5 jovens que iam comemorar o primeiro salário. Ágatha de 8 anos, Kauê de 12. O que todos esses casos têm em comum? A cor da pele das vítimas. Falar sobre estatísticas no Rio de Janeiro – e, para falar a verdade, no Brasil inteiro – dói, mas, garanto que a dor de quem os perdeu foi maior. O silêncio é perturbador. Diante de situações como essa, ele não é uma opção. Enquanto nos calamos, um segurança de mercado se sente livre para asfixiar um jovem, outro chicoteia um rapaz por um chocolate. Fica a pergunta: quem é punido por essas ações? Aparentemente, o conformismo social oculta um Estado que coloca pessoas para se matarem. No Brasil, o fogo contra fogo é um discurso legitimador da violência, porque, quando pessoas despreparadas carregam armas, inocentes morrem.