“É só uma piada”
- 10 de novembro de 2021
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Humor racista é um processamento disfarçado do racismo em que o riso muitas vezes é utilizado como dinamizador nas suas manifestações.
Rachide Incote
Quem não gosta de um bom humor? Há humor tipicamente brasileiro? Como é que você se sentiria se fosse menosprezado com uma piada?
O Brasil é considerado o segundo país com maior número da população preta fora da África, perdendo só para a Nigéria. Foi também, o último país das Américas a abolir oficialmente a escravatura, em 1888. Foram mais de três séculos de escravidão e as consequências estruturais do longo passado escravagista permanecem até hoje, isto é, o racismo continua assumindo diversas formas de manifestação. O brasileiro com seu modo cordial de se relacionar faz surgir expressões que disfarçam o racismo em que o riso muitas vezes é utilizado como conciliador ou dinamizador nas suas manifestações. Piadas racistas procuram afirmar a ideia de que apenas pessoas brancas são indivíduos sociais competentes. O racismo por aqui é hipócrita: ele existe, mas temos que fingir que não.
o advogado e escritor Adilson José Moreira, em seu texto Quem ri do racismo?, afirma que o humor racista opera como uma espécie de pedagogia racial. É preciso dizer para nós, pretos, que não podemos exigir o mesmo nível de respeitabilidade social dos brancos. É frequente ouvir piadas de cunho racial, o que acaba parecendo expressões normais no cotidiano atual. O mais chocante é quando essas pessoas que praticam humor racista afirmam que não tinham intenção de insultar, era só uma descontração.
Na sociedade em que vivemos ninguém aceita que é racista ou que o Brasil é um país com alto índice de racismo, isso faz com que o processo de luta contra esse comportamento preconceituoso se torne muito mais difícil. Isso facilita a propagação da narrativa que expressa desprezo e ódio étnico-racial.
O humor racista é tóxico porque é um modo de propagar ódio. Alguns anos atrás, quando estava no meu segundo ano do curso de jornalismo, passei por uma situação que me deixou triste e nervoso. Um dia, eu estava indo para faculdade vestido todo de preto, de tênis a boné, no meio do caminho encontrei um colega do colégio e ele disse pra mim o seguinte: cara, você está tão estiloso hoje que só dá para ver seus dentes, parece que não vestiu nada. A fala dele foi seguida de uma gargalhada. Senti-me triste com o comentário, mas não revidei, só apertei a mão dele e segui meu caminho. Não foi a primeira vez que ouvi comentários preconceituosos e, com certeza, não sou a única pessoa pertencente aos grupos étnicos minoritários a ouvir coisas do tipo de pessoas brancas que depois dizem que estavam brincando. Não é só pretos, asiáticos e homossexuais que podem fazer piadas com coisas do seu grupo, mas nem tudo deve servir de piada.
Em 2019, aconteceu uma situação onde o apresentador e humorista Danilo Gentili fez uma piada de cunho racista com o empresário preto, Thiago Luis Ribeiro, dizendo: “Quantas bananas você quer para deixar essa história para lá?”. Depois do empresário lhe mandar uma mensagem pública pelo Twitter perguntando qual é o e-mail da Bandeirantes que ele pudesse enviar uma cópia da denúncia que ia apresentar no dia seguinte. Então o apresentador respondeu com a mensagem acima citada. O caso teve bastante repercussão e acabou na justiça, mas Gentili foi absolvido do crime de injúria racial por um juiz branco, que achou que a piada não foi intencional, por isso não configura crime. Quando a lei dá poder a uma pessoa branca de decidir ou julgar problemas sociais e ela simplesmente toma uma decisão dessa natureza perante um comentário de cunho racista, ele procura afirmar mais uma vez sua identidade racial como um lugar de poder.
Segundo Adilson Moreira, autor do livro Racismo Recreativo, o tema pode ser definido como normatização de piadas racistas, forma de propagar ofensas discriminatórias contra minorias e reforçar a supremacia branca. Será que tem graça quando alguém chora? Com certeza, não tem nenhuma graça nisso. Porque para brincadeira ter graça é preciso se respeitar e não constranger o outro ou ofender. Imagine como você se sentiria se alguém chegasse na sua cara e começasse a imitar seu sotaque de um jeito pejorativo, como muitas pessoas zoam com asiáticos dizendo: “Flango flito”.
Provavelmente você já ouviu piadas sobre sexualidade dos orientais e masculinidade de homens asiáticos, o que pode parecer uma forma de criar oportunidade de aproximação ou de descontrair o pessoal, mas ela reproduz estereótipos que afetam a dignidade e a saúde mental dessas pessoas.
Em 2020, num show de Stand up comedy, um humorista disse o seguinte: “Os homens acham que é legal ser ator pornô, mas imagina se tiver que pegar uma oriental daquelas!” O que passa na sua mente sobre mulheres orientais ao ouvir isso? Imagina como se sentiria uma menina asiática diante daquele cenário no show ouvindo essa piada racista? O conteúdo humorista que se consome atualmente é meio pejorativo, às vezes a gente só consegue entender que algo é ruim quando nos atinge. Liberdade de expressão é uma conquista fundamental mas, tem limite e não serve para fazer as pessoas sofrerem. As falas ignorantes, preconceituosas e coisas do tipo precisam ser transformadas e combatidas, porque a dignidade humana deve ser salvaguardada acima de qualquer forma de expressão tóxica.