É só fogo
- 28 de outubro de 2020
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A prática de limpar terras com fogo causa prejuízos ao ecossistema
Amanda Januário
Myrella Lima mal podia esperar para almoçar com o namorado e a família. O sábado estava quente como de costume em Nova Monte Verde, Mato Grosso. Entretanto, os dias vinham sendo mais quentes e esfumaçados. Isso por que o número de queimadas na cidade aumentara. Embora isso causasse desconforto, a vida continuava normal. Quando chegou à casa dos sogros para almoçar, teve um choque. O terreno que fica na zona rural da cidade havia pegado fogo. A correria foi total. Homens correndo de um lado para o outro tentando controlar as chamas impetuosas. Nem é preciso dizer que o clima feliz do almoço teve que ficar para outra hora. A tarde em família com conversas leves foi trocada por olhares temerosos e ansiosos.
Ao conter o fogo, foi possível observar os estragos. A plantação de abacaxi estava perdida. Como bem observou Myrella, o fogo “acabou com a renda deles”. Analise a situação. A queimada descontrolada não mexeu apenas com a terra ou o bolso da família. Sintomas como diarreia, náuseas, dor de cabeça e febre apareceram nas pessoas que inalaram a fumaça.
Há 500 anos
A prática de limpar terrenos com o fogo não é de hoje no Brasil. Tudo começou lá com a cana-de-açúcar. A prática era utilizada por pequenos agricultores. Contudo se passaram mais de quinhentos anos e a cultura das queimadas prevaleceu. Segundo Silvana da Silva, professora no curso de Agronomia na IFSuldeMinas, algumas das funções das queimadas são de eliminar parasitas, renovar a pastagem, limpar e conquistar a rebrota mais rápido. Como opções, o proprietário da terra pode limpá-la manualmente ou por meio de herbicida – produto químico utilizado na agricultura. Embora a queimada seja uma opção mais lucrativa, afeta a natureza. De acordo com Silvana, “a queimada destrói a comunidade microbiológica”.
O problema se intensifica quando se analisa o tamanho da área a ser explorada. Os dados* do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que até setembro de 2020, a área queimada era de 226.485 km², contando os biomas Amazônia, Pantanal, Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica e Pampa. Em expansão, o bioma com maior número de queimadas foi o Cerrado, seguido pela Amazônia e pelo Pantanal. Cíntia Santos, bióloga e pedagoga, explica que a prática de pôr fogo traz para a natureza “alterações climáticas, mudança nos ecossistemas, perdas na biodiversidade, aceleração na extinção de algumas espécies já ameaçadas”.
Fator 30
O fogo ganha uma força extra no período chamado fator 30/30/30. E o que exatamente isso significa? No Brasil, de maio a setembro, o clima é caracterizado por poucas ou nenhuma chuva, o que contribuiu para a elevação da temperatura. Então, o primeiro 30 do fator se deve às temperaturas que ficam acima dos 30 graus. Se por um lado a temperatura está alta, por outro a umidade relativa do ar está baixa. Neste período ela costuma ficar inferior aos 30%. E para somar com os ingredientes que expandem as queimadas, conta-se com ventos acima de 30 km por hora, fornecendo ainda mais fôlego ao fogo. De acordo com o tenente Thyago Rodrigues, do 7.º Batalhão do Corpo de Bombeiros Militar de Aparecida de Goiânia, em Goiás, a soma desses fatores, junto à vegetação abundante e muito seca, “forma o combustível perfeito para a propagação dos incêndios florestais”.
Embora as queimadas sejam permitidas em algumas partes do país, por conta da agropecuária, ela requer do produtor responsabilidade e preparo. O tenente Rodrigues adverte que a prática precisa ser feita por profissionais habilitados e que fizeram cursos específicos. O fogo é de fato um elemento natural difícil de se controlar. Talvez, por isso, tenha surgido o dito “quem brinca com fogo quer se queimar”. Para acender não é preciso muito. Um fósforo, por exemplo, pode fazer o trabalho. Entretanto, o esforço para apagar é muito mais intenso.
De acordo com Rodrigues, em geral, um incêndio traz diversos desafios. Há locais que só é possível chegar a pé. Os bombeiros, dependendo do local, andam dez quilômetros ou mais com mochilas de vinte litros de água, além de abafadores e motosserras. Enquanto o esforço de acender um fogo não passa de um minuto, o trabalho para apagá-lo pode durar dias. Na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, o fogo castiga a reserva há quase duas semanas. Rodrigues informou terem remanejado para o local 140 pessoas para conter as chamas, em três grandes focos, além de 26 veículos e 5 aeronaves. Ainda assim, “a área já consumida pelo fogo está em torno 16 mil hectares e, na área vizinha, em Pouso Alto, o fogo atingiu 46 mil hectares”, menciona o tenente. E quando finalmente a chama se apaga e a fumaça vai embora, é possível notar os estragos deixados.
De acordo com a professora Silvana, “o nosso solo é um organismo vivo” , dessa maneira estamos interligados. Seria ingênuo pensar que o que acontece a quilômetros de distância de nossas grandes cidades não iria de uma forma nos afetar. Em entrevista ao blog VivoVerde,o diretor de Biodiversidade e Áreas Protegidas do Naturatins, Antônio Santiago enfatizou que “o principal problema das queimadas é que elas podem acabar com a biodiversidade, matando plantas, animais e os microorganismos fundamentais para o equilíbrio ecológico”.
Quando parou para analisar o estrago acometido no sítio dos sogros, Myrella fez uma pergunta, “Como as pessoas que fazem isso (queimadas) não tem consciência de que isso afeta as outras pessoas?”. De fato, no fim das contas todos pagamos a conta por destruir o planeta que chamamos de lar. As queimadas são apenas uma das muitas outras práticas abusivas em nosso planeta. E as consequências estão presentes já no nosso dia a dia, como dias quentes, esfumaçados e até chuva preta. É preciso rever o custo-benefício de nossa sobrevivência.