Criadores subjugados
- 26 de setembro de 2016
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- Thamires Mattos
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Em uma época de suposta evolução, o homem retrocede pois torna-se dominado por aquilo que criou
Emanuely Miranda
Philip Dick, escritor do século passado, produziu obras concentradas no tema de ficção científica, das quais oito ganharam adaptação para o cinema. O livro Scanner Darkly figura entre elas. No Brasil, o filme foi divulgado com o nome Homem Duplo, mas vamos manter a designação original pois é mais sugestiva para a análise que se seguirá.
Em uma sociedade futurista, uma droga conhecida como substância D arrebanha viciados. O narcótico, altamente viciante, desencadeia alucinações em seus usuários. A agência NewPath decide investigar a substância e, para tal missão, insere um agente infiltrado em um grupo de dependentes.
A agência selecionou o policial Fred para a missão. Para o disfarce o policial recebe o nome de Bob Actor. Entretanto, o agente optou por um caminho arriscado. Para se infiltrar com eficácia e sem levantar suspeitas a respeito de seu trabalho, Fred decide consumir as drogas de fato. Ingênuo, ele achou que manteria tudo sob controle, porém se tornou viciado assim como os demais. Como consequência do consumo da substância D, os dois hemisférios de seu cérebro passam a disputar o domínio de sua consciência. Esse conflito desnorteia o profissionalismo e a vida pessoal do rapaz.
Na trama, o policial em missão utiliza uma roupa futurista que altera sua fisionomia e sua voz. Através dessa indumentária, sua identificação é velada. Outros aspectos tecnológicos permeiam o filme. Um scanner é utilizado como ferramenta para vigiar os rapazes com os quais Fred convive e investiga. O poder avassalador que o aparelho tem de fazer parte da vida das pessoas sem que estas o notem é que dá origem ao nome do filme em inglês, que em tradução livre seria algo como “scaner obscuro”.
Além disso, sua produção ostenta uma peculiaridade: o longa foi produzido originalmente com atores, mas após as gravações convencionais, um recurso técnico conhecido como rotoscopia foi aplicado às filmagens. Os fotogramas foram duplicados sob a forma de animação. Com esse procedimento, a ficção científica narrada pelo autor do livro ganhou vida no filme. As imagens da obra cinematográfica remetem à estranheza da contemporaneidade subjugada por tecnologias.
O curioso é que Dick faleceu no começo dos anos 80. Nessa época, os computadores pessoais estavam em início de carreira e os telefones celulares nem haviam sido concebidos ainda, porém, ainda assim, o visionário escritor conseguiu prever a presença da realidade virtual na sociedade.
Todavia, passou despercebido na mente de Dick o fato de que a tecnologia viciaria tanto quanto narcóticos. A mesma realidade virtual sugerida pelo escritor se assemelharia ao vício das drogas abordado no filme. Assim como a substância D, a tecnologia causa um conflito de identidade. As pessoas passam a viver no espaço virtual enquanto a realidade segue e as deixa para trás. O homem é domesticado pelos aparelhos que possui, isto é, somos possuídos por nossas posses.
Essa situação pode ser percebida, por exemplo, quando dispensamos horas necessárias de sono para ficar mais tempo mexendo no telefone celular ou quando um acidente ocorre porque o motorista usou o aparelho enquanto sua atenção devia estar plenamente voltada para o trânsito. A tecnologia, que deveria contribuir para a evolução humana, nos retrocede.
Segundo o filósofo alemão Martin Heidegger, o homem vai em busca de tecnologia para conquistar a própria natureza. No entanto, ao conquistá-la, ele a destrói. A técnica, inicialmente desenvolvida para o bem, se torna arma nas mãos do indivíduo que esqueceu o pensamento no qual deveria meditar. O homem atrofia sua razão e a tecnologia ganha fama de vilã da história. Será mesmo que a nocividade está nos avanços tecnológicos? Ou a periculosidade está naqueles que os usam? Se não sabemos usar a evolução que fomentamos não a merecemos.
Já que iniciamos a discussão falando da sétima arte, jogo na roda o filme “Tempos Modernos”, obra do imortal Charles Chaplin. O longa reproduz a situação caótica do operariado no século XIX. Carlitos, personagem principal do filme, tenta sobreviver à férrea Revolução Industrial, época na qual vimos as máquinas sobrepujarem os homens e seus sentimentos. Nesse caso, não estamos falando apenas sobre realidade virtual, trata-se de uma realidade quase palpável e, infelizmente, antiga. Sobre essa situação, Chaplin comenta: “Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz em abundância, tem-nos deixado em penúria”. Os valores são invertidos e os princípios se perdem. A criatura controla o criador. O virtual se torna realidade.